Como passei a amar o Dia Mundial do Teatro

Comemora-se este Dia Mundial do Teatro com um teste à maturidade dos teatros, que reorganizam equipas e meios, ponderam a reprogramação de espectáculos, estimam custos de suspensão de actividade.

“Olho para o relógio, são 9h25 e penso: ‘Meu Deus, ainda estou vivo!’ Devíamos estar agora a entrar em cena.”, canta David Bowie em Time, canção que ouvi pela primeira vez, há mais de vinte anos, num espectáculo do Teatro Nacional São João. Hoje é Dia Mundial do Teatro. Ainda estamos vivos — e devíamos estar a entrar em cena. Não é possível? O vírus que enxameia o mundo ataca o princípio fundador do teatro — a ideia da co-presença, pessoas diante de pessoas, imaginando pessoas.

No teatro, a única distanciação possível é a brechtiana, também designada “estranhamento”. Se não nos podemos abraçar, não é possível fazer teatro. Iludimo-nos um pouco — fazemos teatro? — promovendo a transmissão online de espectáculos gravados, realizando oficinas por canais digitais, disponibilizando gratuitamente textos dramáticos, recuperando memórias de criações teatrais do passado. Talvez o silêncio fosse mais eloquente, passou-me pela cabeça, embora não me atrevesse a dizê-lo. Talvez fosse melhor dar todo o palco à frase da Castro, a primeira tragédia de língua portuguesa, afixada nas fachadas agora encerradas do São João e do Teatro Carlos Alberto: “Grã remédio é ter o espírito armado à má fortuna.” Alguém protestou: “Um texto actual, por favor!”

Máquina de circulação da memória cultural da humanidade, o teatro demonstra que actual é o que actua sobre nós. Posto em cena, um texto quinhentista é um texto com quinhentos anos de actualidade. É irónico que a Castro, prevista estrear esta sexta-feira no palco do São João, com encenação de Nuno Cardoso, e que veremos esta noite minimizada num ecrã, em isolamento domiciliário, confine o drama a uma casa, como se todo o país pudesse ser um condomínio fechado.

A epidemia que enfrentamos encerra os teatros e os lugares de culto — juntos de novo, depois de terem partilhado um berço ancestral — como “actividades não essenciais”, ao contrário do que sucede com farmácias, supermercados e bancos. O coronavírus faz cair as máscaras: o teatro revela-se afinal dispensável. A superfluidade do teatro é todavia preciosa, dela não estamos dispostos a abrir mão: não é pelo supérfluo que se vive, mas “é para o supérfluo que se vive”, percebeu Brecht, que tanto quis tornar o teatro útil, sem nunca verdadeiramente o conseguir. Estamos hoje instruídos quanto à importância capital do teatro, seja na formação da sensibilidade e da consciência cívica individual, seja no plano da inclusão social. O teatro, porém, não nos impede de morrer; lembra-nos de que estamos vivos. Diz-nos, por vezes, que o homem é uma coisa ainda não nascida, ou que ainda não nos tornamos plenamente humanos.

Aflige-me um pouco a perspectiva de desatarmos a fazer teatro nas varandas dos prédios, embora a cena mais célebre do teatro universal ocorra numa varanda. “Para que haja teatro, é preciso que haja teatros”, afirmou António Pedro. Se me disserem que é um axioma anódino, replicarei que não, não é.

Descidos os panos de ferro, comemora-se este Dia Mundial do Teatro com um teste à maturidade dos teatros, que reorganizam equipas e meios, ponderam a reprogramação de espectáculos, estimam custos de suspensão de actividade, conciliam exigências legais e o imperativo ético de protecção de artistas e técnicos, asseguram reembolsos e a informação ao público, reforçam o programa editorial. Sem espectáculos, cada teatro faz prova da sua credibilidade como organização e — passe a blasfémia — empresa. Este não é um Dia Mundial do Teatro para esquecer. Iremos lembrá-lo por muitos anos ainda.

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