Na luta contra a covid-19, equipas do INEM também cuidam dos seus

O medo do contágio, o desconforto do equipamento, o estigma numa sociedade que endeusa, mas quer distância de quem está na linha da frente. Os desafios dos trabalhadores do Instituto Nacional de Emergência Médica e o dispositivo montado para os apoiar. Um flash no dia em que a família de uma técnica se sujeitou a testes de covid-19.

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Ana Patrícia Almeida vem ao portão de ferro em pantufas, máscara cirúrgica, cão ao colo. A técnica de emergência pré-hospitalar está isolada com um diagnóstico de covid-19. Teve mil cuidados. A mãe, também ela num serviço essencial, o apoio domiciliário a idosos, apanhou o vírus. Agora, lá dentro, à espera de teste, estão os avós, o pai, o marido.

O Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) tem equipas dedicadas em exclusivo à covid-19. Sempre que um médico liga a pedir um teste numa casa ou numa estrutura residencial, a “sala de situação nacional”, em Lisboa, acciona uma das mais próximas. Na delegação do Norte, no Porto, trabalham duas equipas de colheitas e uma equipa de transporte de doentes.

Uma equipa de colheita está do lado de fora do portão, naquela rua da freguesia de Alfena, no concelho de Valongo. A manhã de segunda-feira, 13 de Abril, aproxima-se do fim e o enfermeiro José Magalhães procura esclarecer alguns detalhes. Cabe-lhe preparar o terreno.

– Tenho aqui o meu pai, a minha avó, o meu avô, a minha tia, o meu marido –, diz Patrícia, entre os insistentes latidos do cão.

– Eles andam?

– Andam todos.

– Há um hall ao qual se possam deslocar? Sentavam-se numa cadeirinha. Isto facilitava o trabalho. Não era preciso andar a passear pela casa toda.

– Há. Vou-lhes dizer para sair um de cada vez.

– Tem uma mesinha para colocar o material em cima?

– Eu arranjo.

Andou 11 anos nas ambulâncias do INEM, esta mulher de 35 anos. Passou a trabalhar no Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU), a atender chamadas, a fazer a triagem, a accionar meios de socorro, depois de sofrer uma forte lesão na coluna. Terá sido naquela sala, repleta de conversas paralelas e cabines alinhadas, que contraiu o vírus, através de um colega de turno.

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Técnico a fazer atendimento de triagem no CODU. Paulo Pimenta

20 casos no lar

Não mora nesta casa coberta de azulejos cujo portão agora escancara. Mora num apartamento, em Rio Tinto, no concelho de Gondomar. No dia 11 de Março, quando soube que o colega tinha covid, falou com o marido e com a filha sobre o lugar ideal para fazer quarentena. “Viemos para aqui, para um anexo, para podermos ter algum suporte familiar na compra de medicamentos e de alimentação.”

Um mês inteirinho escondidos do resto do mundo. O marido, técnico de informática, em teletrabalho, e Patrícia, de baixa, a inventar estratégias para entreter a filha de dez anos. Da janela, ia perguntado se os pais, os avós ou a tia tinham sintomas. Domingo, ao final do dia, chegou a notícia: a mãe, Ana Maria, de 56 anos, está infectada. 

Houve 20 casos positivos num dos lares do Centro Social e Paroquial de Alfena. No serviço domiciliário, Ana Maria terá sido contaminada por uma colega, cuja filha trabalha no infantário, mas fora desviada para o lar, para a lavandaria. “Azar o meu, andei com ela”, diz, sentada à janela. “A trabalhar usava máscara, viseira, bata, tudo, mas a almoçar tirava. Se calhar, foi aí.”

O pior pesadelo de Patrícia, de rompante, ganhou vida. Teme, sobretudo, pelos avós, ela com 85, diabética, hipertensa, deslipidérmica, ele com 89, diabético, hipertenso, com patologia cardíaca. E pela tia, de 66, com défice cognitivo, hipertensão, neoplasia da mama. Logo naquela noite, telefonou ao enfermeiro Márcio Silva, membro da equipa de controlo da infecção.

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Dúzia de funcionários infectados

Há uma equipa no Porto, outra em Coimbra, outra em Lisboa e outra em Faro a dar apoio aos funcionários do INEM e aos seus prestadores de serviço. “Na delegação do Norte, temos 12 com covid”, explicara o director, António Rui Barbosa. “A nível nacional são 13.” Isto, num universo de 1318 funcionários. Também há quatro prestadores de serviços contaminados. Em qualquer caso, ninguém das equipas dedicadas em exclusivo à covid-19.“Ficamos com a percepção que teve mais a ver com transmissão na comunidade do que com a actividade em si.”

Desde o início da epidemia, aquelas equipas acompanharam um total de 197 funcionários. Nesta segunda-feira, continuam a acompanhar 56 – infectados, em quarentena ou a aguardar teste. Estão todos a recuperar, ao que diz Márcio Silva. Os números mudam todos os dias. 

O protocolo é apertadíssimo. No pátio da família Almeida, o enfermeiro Sérgio Silva desinfectava as mãos, calçava dois pares de luvas, coloca uma touca, uma máscara, um par de óculos, veste um fato por cima do equipamento do INEM, cobre as botas. O enfermeiro José Magalhães, apenas com uma máscara, um par de luvas e uma bata, supervisiona cada gesto. Só o primeiro entra em casa para fazer os testes.

Enquanto estes dois enfermeiros tratam desta família, no CODU outros profissionais continuam, de máscara, a atender chamadas, a fazer a triagem, a accionar meios de socorro. E outras vão, a grande velocidade, de ambulância, em socorro de pessoas vítimas de doença súbita, acidente ou crime. Nesse turbilhão, também aparecem pessoas com sintomas de covid-19.

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António Táboas, médico responsável pela coordenação nacional dos CODU. Paulo Pimenta

O volume de chamadas diminuiu. “Há pessoas que por questões menores ligam ao 112 e querem ir ao hospital. Hoje em dia, essas situações já não surgem tanto”, comentara o coordenador nacional do CODU, António Táboas. Temem entrar numa ambulância ou num hospital. Também caiu o movimento nas ruas. Imensa gente confinada, imersa em teletrabalho e ensino à distância, dá “menos acidentes de trabalho, menos acidentes de viação, menos traumas nas escolas”.

Medo, desconforto, estigma

Não se pense que entre profissionais do INEM também não há medo. O Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) está a acompanhar 132 pessoas. A responsável, Sónia Cunha, reconhece-lhes “medo de estarem mais expostas a este agente desconhecido, medo de serem portadoras, medo de infectarem familiares”. “Algo que fazemos com os nossos profissionais e com a população em geral é avaliar a intensidade do medo”, esclarece. “Temos de perceber o que é normal e a partir de que ponto passa a ser disfuncional e incapacitante.”

A psicóloga nota também o esforço necessário para trabalhar com tanto equipamento de protecção individual - o peso, o aperto, o calor, o desconforto. E um certo estigma. Por um lado, há uma espécie de endeusamento de quem está na linha da frente e uma enorme gratidão por estarem a assumir tantos riscos para salvar vidas alheias, por outro, um desejo de distância. “São processos distintos”, salienta a especialista. “Uma coisa é dizer que são uns heróis e agradecer e outra coisa é querê-los por perto, no seio familiar, na comunidade.”

Não conhece casos ostensivos, como se tem visto em França e Espanha, com vizinhos a deixar bilhetes a profissionais de saúde a pedir-lhes que se mantenham longe de casa durante a pandemia. É tudo muito subtil, dissimulado. “Temos pedido aos nossos profissionais que não usem farda em locais públicos a não ser que estejam de serviço. Nos locais residenciais, não devem circular com farda.”

Há quem tenha decidido não ir a casa. A equipa do CAPIC desaconselhe tal estratégia. “O distanciamento familiar prolongado tem um impacto importante em termos de saúde mental no profissional e na família”, esclarece Sónia Cunha. “Provoca ansiedade, perturbações de stress. A experiência pode ser de tal forma negativa que deixa sequelas, o que torna mais difícil, numa fase posterior de recuperação, o retorna à normalidade.”

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Sónia Cunha, responsável pelo Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise Paulo Pimenta

Dos que optarem por afastar-se, alguns têm voltado atrás. Mantendo distanciamento, evitando partilha de objectos pessoais. Recomenda-se que cada um tenha o seu prato, os seus talheres. “Devem usar a sua casa de banho, se for possível. Se houver um quarto disponível, devem utilizá-lo.” Na prática, em cada casa acciona-se um plano de contingência. Como Patrícia fez quando descobriu que podia estar doente.

Sem abraços há um mês

Impossível dormirem em quartos separados e usarem quartos de banho distintos. O anexo tem dois quartos, uma sala, uma cozinha, uma casa de banho. Patrícia fica num quarto com o marido, a filha no outro. Desinfectam o quarto de banho e cada uso. Evitam estar na mesma divisão. Quando estão, procuram manter alguma distância. Mesmo ao ensiná-la a cozinhar mantém-se a um metro e de máscara.

Matilde, no cimo das escadas, revela-se cansada. Nas férias da Páscoa, entretinha-se com aulas de piano dadas pelo professor através das redes sociais, jogos digitais disputados com a prima, os jogos tradicionais e as experiências com os pais, mas suspira por normalidade. Quando se lhe perguntar de que tem mais saudades, responde: “De dar beijinhos e abraços.” Não é para menos. “Desde que a minha mãe soube que tinha um colega contaminado que não posso dar abracinhos a ninguém. Às vezes, fico triste. Tenho medo que alguém fique mais doente e vá para o hospital...”

“Tivemos de arriscar”, justifica a mãe. “Se tivesse tido contacto com o vírus, era portadora e podia contaminar os avós. Essa parte de não ter um abraço ou um beijo ela sente falta. Por azar, isto apanhou-nos numa data…. A minha mãe fez anos. Veio a Páscoa. A Matilde nunca passou um domingo de ramos sem a madrinha e o padrinho. E ela é muito apegada ao meu pai. Andam os dois muito angustiados com isto.”

Sérgio Silva cruza a porta da rua com as colheitas feitas. Outro ritual para retirar o equipamento de protecção individual. Sempre que tira uma peça, desinfecta as mãos. Vai colocando tudo num saco de lixo, que é selado e levado para um contentor que está no interior da ambulância. Hão-de parar no Hospital de São João, onde Sérgio Silva entregará as cinco colheitas para análise laboratorial.

Se Patrícia precisar, a CAPIC pode prestar-lhe apoio social. Está a fazê-lo a 70 profissionais, o que, segundo Sónia Cunha, inclui alojamento profiláctico, refeições e cuidados de higiene a idosos e/ou acolhimento diurno e nocturno de crianças. Não é o INEM a abrir serviços de apoio domiciliário e creches e escolas. É, resume, “o resultado do funcionamento em rede entre sectores e instituições”.

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Sérgio Silva a sair da casa da família Almeida. Paulo Pimenta

Patrícia agradece, mas declina. Muitos dos que moram naquela rua são seus familiares. Nem precisa de lhes pedir, vários tomam a iniciativa de lhe perguntar se precisa de algo da farmácia ou do supermercado. E pode ser que nem disso careça. Tinha o primeiro “teste de cura" agendado para dali a três dias. Entretanto, o resultado chegou: negativo. Este sábado, repetirá o teste. Se tornar a dar negativo, irá à consulta de medicina no trabalho saber se poderá voltar à linha de combate.

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