Covid-19: Trump estrangula OMS e rejeita culpas no combate à pandemia

Presidente dos EUA suspendeu o financiamento da organização, acusando-a de colaborar com a China para “encobrir” a gravidade do coronavírus. Críticos falam em “crime contra a humanidade”.

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A decisão foi anunciada na terça-feira, numa conferência de imprensa na Casa Branca Reuters/LEAH MILLIS

No meio de uma pandemia que já matou quase 130 mil pessoas em todo o mundo em quatro meses, 20% do total só nos Estados Unidos, o Presidente norte-americano, Donald Trump, anunciou a suspensão do financiamento à Organização Mundial de Saúde (OMS) pelo menos até Junho ou Julho. A Casa Branca acusa a organização, e em particular o seu director-geral, de “espalhar desinformação chinesa” e de “provocar muitas mortes com os seus erros”.

A decisão, anunciada por Trump numa conferência de imprensa nos jardins da Casa Branca, na noite de terça-feira, foi condenada por vários líderes internacionais, incluindo o secretário-geral das Nações Unidas. Sem referir o nome do Presidente norte-americano, António Guterres disse que “esta é a altura para haver união em todo o mundo, e não para cortar recursos da OMS”.

“Quando virarmos a página desta pandemia, teremos tempo para olhar para trás e perceber como é que uma doença como esta surgiu e se espalhou de forma tão rápida, e de que forma reagiram à crise todos os envolvidos”, disse o secretário-geral da ONU.

O director-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, foi diplomático na sua reacção. “Os EUA são um amigo generoso e de longa data da OMS, e esperamos que continuem a ser. Lamentamos a decisão do Presidente dos EUA”, disse o etíope.

Menos diplomáticas foram as reacções de outras personalidades, como o norte-americano Bill Gates. A Fundação Bill e Melinda Gates é o segundo maior financiador da OMS, embora a título voluntário: contribuiu com 530 milhões de dólares.

“Suspender o financiamento da OMS durante uma crise mundial de saúde é tão perigoso como parece. O seu trabalho está a abrandar a disseminação da covid-19, e se for travado nenhuma outra organização poderá substituí-la”, disse Gates no Twitter.

Ainda mais duro, o director da revista médica The Lancet, Richard Horton, referiu-se à decisão como “um crime contra a humanidade”. “Cada cientista, cada profissional de saúde, cada cidadão, deve resistir e revoltar-se contra esta chocante traição da solidariedade internacional”, disse Horton no Twitter.

CDC mantém parceria

Para o biénio 2018-2019, a OMS contou com um orçamento global de seis mil milhões de dólares, com os EUA a liderarem a lista com quase 900 milhões de dólares.

Mais de 70% desta soma são contribuições voluntárias, como as de fundações, para participar em projectos específicos da OMS. Outros 237 milhões foram pagos como uma contribuição calculada com base na riqueza do país e no tamanho da sua população.

A título de comparação, o Governo português pagou, no mesmo período, 3,7 milhões de dólares, e o Instituto Português do Desporto e Juventude, por exemplo, fez uma contribuição voluntária de 26.600 dólares.

Donald Trump anunciou uma “revisão” das decisões de financiamento da OMS nos próximos 60 a 90 dias – até lá, suspende os pagamentos dos EUA, sem especificar se será mesmo tudo. O director dos Centros de Controlo e Prevenção das Doenças norte-americanos (CDC), Robert Redfield, disse que a instituição vai continuar a colaborar com a OMS. 

A China é o segundo Estado que mais contribui para o orçamento desta agência da ONU – deu 75,7 milhões de dólares no biénio de 2018/19. Repetindo um argumento que tem sido usado pelo Partido Republicano nos Estados Unidos, Trump acusou a OMS de “aceitar de bom grado as garantias da China” quando o novo coronavírus surgiu na província chinesa de Hubei, e de “participar na desinformação chinesa”, lançando suspeitas sobre o director-geral da OMS e a instituição que dirige.

De acordo com várias investigações de jornalistas, a gravidade do coronavírus foi escondida pelas autoridades chinesas numa fase inicial. Segundo uma investigação da agência Associated Press, divulgada esta quarta-feira, com base em documentos internos de Pequim, nos seis dias depois de o Governo chinês ter detectado o surto do novo coronavírus e de o ter divulgado, o país somou mais de três mil pessoas infectadas. 

Elogios antes das críticas

As críticas do Presidente norte-americano à OMS são recentes. A 24 de Janeiro, três dias depois do primeiro caso confirmado nos Estados Unidos, Trump elogiou “os esforços e a transparência” da China. “Tudo vai acabar bem. Em nome do povo americano, quero agradecer ao Presidente Xi Jinping”, disse Donald Trump no Twitter.

Um mês depois, quando vários responsáveis da Casa Branca, incluindo o secretário de Estado da Saúde, Alex M. Azar, o avisavam sobre a hipótese de o novo coronavírus se espalhar nos EUA, Trump elogiou a OMS.

“O novo coronavírus está sob controlo nos EUA”, disse o Presidente norte-americano, no Twitter, a 24 de Fevereiro. “O CDC e a OMS têm trabalhado muito e de uma forma muito inteligente. As bolsas de valores parecem estar a recuperar!”

Bode expiatório 

Apesar de a resposta inicial da OMS poder vir a ser questionada no futuro – como indicou o próprio secretário-geral da ONU –, a fúria do Presidente Trump contra a organização foi crescendo à medida que aumentavam as críticas à sua própria gestão do combate à pandemia nos Estados Unidos.

Na conferência de imprensa de terça-feira, Trump foi questionado sobre as suas responsabilidades, em particular sobre as razões de só ter recomendado o distanciamento social em meados de Março – não aproveitando o tempo que pode ter ganho com a proibição da entrada no país de passageiros estrangeiros vindos de voos da China, decretada um mês e meio antes.

Sem nunca explicar a sua mudança de posição sobre o trabalho da OMS, o Presidente norte-americano salientou o papel da Casa Branca nas negociações comerciais com Pequim e disse que “adoraria ter uma boa relação com a China”.

Apanhada no meio do fogo cruzado entre os Estados Unidos de Donald Trump e a China de Xi Jinping, a OMS sofre também com as consequências de uma década marcada por fortes restrições orçamentais, por causa da maior crise financeira mundial de que há memória, e pelo crescimento de lideranças nacionalistas menos dispostas a apoiar iniciativas internacionais.

O orçamento operacional da organização – o que pode ser usado no combate a doenças em todo o mundo e em investigação – ronda os dois mil milhões de dólares por ano. “Menos do que muitos hospitais universitários, e divididos por uma enorme variedade de projectos de saúde pública e investigação”, disse o jornalista britânico e antigo investigador em imunologia Stephen Buranyi, num artigo publicado no jornal Guardian na passada sexta-feira.

“A OMS é menos como um general, ou como um político eleito com um mandato forte, e mais como um treinador mal pago e receoso de ‘perder o balneário’, e que só pode obter resultados através do charme, da bajulação, da lisonja e, por vezes, da súplica aos seus jogadores”, disse Buranyi.

Sem contar com um poder efectivo para impor medidas aos países, mas dependente do dinheiro deles, a OMS é muitas vezes acusada de fazer pouco quando as consequências acabam por ser graves – como é o caso do novo coronavírus –, e de exagerar na resposta quando o problema se revela menos grave – como foi o caso do surto de H1N1, em 2009.

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