Covid-19: no meio da pandemia, a Casa Branca ficou pequena de mais para o Presidente e um cientista

Donald Trump partilhou uma mensagem no Twitter em que se apela ao despedimento do imunologista Anthony Fauci, a principal figura da equipa de combate ao novo coronavírus nos EUA.

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Anthony Fauci ao lado de Donald Trump numa das conferências de imprensa diárias na Casa Branca Reuters/KEVIN LAMARQUE

Nos últimos dois meses, à medida que o novo coronavírus ia engolindo algumas das regiões mais importantes para a economia dos Estados Unidos, da Califórnia a Nova Iorque, o debate sobre o equilíbrio entre salvar vidas e salvar postos de trabalho foi ganhando forma à volta de duas figuras que partilham o palco nas conferências de imprensa diárias sobre a pandemia, o Presidente Donald Trump e o imunologista Anthony Fauci. Mas foi só nas últimas horas que surgiram os primeiros sinais claros de que a Casa Branca começou a ficar pequena de mais para os dois: no domingo, Trump partilhou no Twitter uma mensagem em que se apela ao despedimento de Fauci e deixou o país em suspense sobre o que vai acontecer nos próximos dias.

A mensagem original foi publicada às 23h02 de domingo por Deanna Lorraine, uma antiga instrutora de relacionamentos amorosos transformada em figura da direita ultraconservadora dos Estados Unidos.

Ainda pouco conhecida nos meios políticos, Lorraine candidatou-se ao 12.º distrito eleitoral da Califórnia pelo Partido Republicano, em Novembro, e teve 1,8% dos votos numa corrida destinada ao fracasso contra a líder da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, do Partido Democrata.

Apesar de ser uma figura pouco conhecida na base de apoio a Trump, longe da popularidade dos apresentadores de programas do canal Fox News como Sean Hannity ou Laura Ingraham, Deanna Lorraine viu o seu tweet partilhado pelo Presidente dos Estados Unidos menos de uma hora depois, ainda na noite de domingo.

“Fauci anda a dizer que se Trump tivesse ouvido os especialistas mais cedo, poderia ter salvado mais vidas. Mas a 29 de Fevereiro, Fauci andava a dizer que não havia razões para nos preocuparmos e que [o novo coronavírus] não era uma ameaça para os Estados Unidos”, disse Lorraine, que fechou a sua mensagem no Twitter com um apelo ao despedimento do imunologista norte-americano: “#FireFauci.”

Segurança pessoal

Anthony Fauci, de 79 anos, é o director do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecto-contagiosas dos Estados Unidos desde 1984. Em mais de 50 anos como investigador, distinguiu-se nos estudos sobre o sistema imunitário, no combate ao VIH e no desenvolvimento de tratamentos para doenças reumatológicas raras como a poliarterite nodosa.

E é também, para muitos apoiantes do Presidente Trump, o grande responsável pela perda de milhões de postos de trabalho nos EUA nas últimas semanas, por ser a face mais conhecida dos apelos da comunidade científica à imposição de medidas radicais como o encerramento de empresas, o isolamento em casa e o distanciamento social.

Durante as conferências de imprensa diárias na Casa Branca sobre os planos de combate ao novo coronavírus, Fauci tem intervindo para corrigir e até mesmo desmentir afirmações de Trump. Um dos principais pontos de tensão entre os dois é o desacordo sobre uma data para o regresso à normalidade – o Presidente norte-americano aponta agora para 1 de Maio, depois de o seu desejo de “reabrir o país” até à Páscoa ter falhado; e o imunologista diz que não é possível, nem aconselhável, que a Casa Branca se comprometa com uma data.

A tensão entre os dois responsáveis tem crescido de dia para dia, mas até domingo só havia sinais indirectos desse mal-estar. Apesar das várias entrevistas em que Anthony Fauci fez comentários sobre a conturbada relação com Donald Trump, as críticas e ameaças ao cientista tinham partido dos sectores da direita radical norte-americana em que se movimentam figuras como Deanna Lorraine.

E foi por causa dessas ameaças que Fauci passou a ter segurança pessoal no início de Abril. Nos sites da direita radical norte-americana, o imunologista é agora o maior vilão do país: “Fauci é um agente do Estado secreto, que quis que a infecção se alastrasse ao maior número de pessoas possível. Ele sabia o que estava a acontecer. Está metido com [Bill] Gates e com a Organização Mundial de Saúde. Eles querem vacinar-nos a todos com uma vacina que tem um microchip”, lê-se numa das várias contas no Twitter de apoio a Donald Trump.

"Pressão contra encerramentos"

A partilha do apelo ao despedimento de Anthony Fauci pelo Presidente Trump, na noite de domingo, surgiu depois de o imunologista ter reforçado os seus avisos contra uma reabertura total e rápida da economia norte-americana. No sábado, numa entrevista na CNN, Fauci indicou que esse passo não deve ser dado antes de Junho, e mesmo assim só de forma faseada.

“Não vamos carregar num botão e dizer OK, chegámos a Junho, ou Julho, ou seja quando for, e as coisas voltam a funcionar”, disse o imunologista, sublinhando que o caminho para um regresso à normalidade só deve começar quando o país tiver capacidade para fazer testes em tempo real a toda a população, afastar as pessoas infectadas e conter rapidamente um foco em qualquer ponto do país. Questionado sobre quando é que isso vai acontecer, Fauci disse que “é uma óptima pergunta”.

“Vai depender das regiões do país”, disse o especialista. “Como é óbvio, em Nova Iorque, que está a passar por uma situação terrível, vai ser diferente do Arkansas e de outros estados na Costa Oeste, como Washington, que têm sido muito bem-sucedidos a prevenir um enorme aumento de casos.”

Mas foi outra observação, que Fauci também disse ser óbvia, que terá motivado o Presidente Trump a partilhar no Twitter a mensagem de apelo ao despedimento do imunologista.

“É óbvio que podemos dizer, com toda a lógica, que se este processo tivesse começado mais cedo, poderíamos ter salvado vidas. Ninguém vai negar isso”, disse Fauci. “Mas essas decisões são complicadas. É claro que se tivéssemos encerrado tudo desde o início, as coisas talvez fossem um pouco diferentes. Mas nessa altura houve muita pressão contra os encerramentos.”

Apesar de salientar que não é justo comparar-se o caso da Coreia do Sul ao dos Estados Unidos (quer pela dimensão das populações, quer pela natureza distinta dos surtos nos dois países), e de sublinhar que há outros factores a ter em conta para além da rapidez com que se tomam medidas de isolamento, Anthony Fauci tinha acabado de pôr em causa a principal mensagem que o Presidente Trump tem transmitido ao país nas últimas semanas – que foi por causa dele, e contra os conselhos de especialistas como Fauci, que os Estados Unidos agiram cedo para travar o novo coronavírus.

“Se o Partido da Oposição das Notícias Falsas está a impingir, com todas as suas forças, o facto de que o Presidente Trump ‘ignorou avisos iniciais sobre a ameaça’, então porque é que os media e o Partido Democrata me criticaram tanto quando eu decretei uma proibição de viagens da China? Eles disseram que era ‘extemporânea e desnecessária’. Media corruptos!”, disse Trump no domingo.

Avisos ignorados

No dia 31 de Janeiro, o Presidente norte-americano anunciou a proibição da entrada no país de passageiros estrangeiros com origem em voos directos da China. Apesar de especialistas como Fauci terem levantado dúvidas sobre a proibição de viagens durante o mês de Janeiro, no final desse mês já era consensual que as medidas teriam de ser reforçadas.

No sábado, o New York Times noticiou que um conselheiro do Departamento de Veteranos dos Estados Unidos, Carter Mercher, começou a pedir medidas mais radicais às estruturas do Governo norte-americano no dia 28 de Janeiro – uma semana depois do registo do primeiro caso do novo coronavírus no país e seis semanas antes de o Presidente Trump ter começado a recomendar o distanciamento social à população em geral, no dia 16 de Março.

Segundo o jornal norte-americano, os avisos surgiram cedo e de várias fontes.

Ainda no início de Janeiro, o Conselho de Segurança Nacional transmitiu a avaliação dos serviços secretos de que a China poderia estar a desvalorizar o impacto do novo vírus; no dia 29 de Janeiro, o conselheiro da Casa Branca para o comércio, Peter Navarro, alertou para a possibilidade de uma pandemia fazer 500 mil mortos e provocar prejuízos na ordem dos triliões de dólares; no dia 30 de Janeiro, o secretário da Saúde, Alex M. Azar, alertou Trump para a possível chegada de uma pandemia; e na terceira semana de Fevereiro os principais conselheiros de saúde pública na Casa Branca recomendaram ao Presidente “uma nova abordagem que incluísse avisos à população sobre os riscos e medidas como distanciamento social e isolamento em casa”.

O Presidente norte-americano viria a pronunciar-se pela primeira vez a favor destas últimas medidas no dia 16 de Março, com a apresentação de um guia intitulado “15 dias para abrandar a propagação” do novo coronavírus.

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