Não há senão sem bela!

No aqui e agora da crise de covid-19, diria que na entrada e travessia da sexta semana de isolamento estamos em condições de encetar a celebração da Páscoa de dentro de cada um.

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LUSA/FOCKE STRANGMANN

Cinco semanas de quarentena colectiva já vividas, completamos a celebração da Páscoa de 2020 de forma atípica tanto quanto especial. Época particularmente importante para todos os cristãos, é, por definição, a altura do ano em que podemos mergulhar, por dentro, na reflexão do seu tema central: a morte e a transformação. 

Em almoços recatados povoados de silêncio e com menos distracções, esta Páscoa talvez seja mais pura, porque mais introspectiva, mais capaz de despertar em cada um de nós o renovar da esperança.

Por vezes, as crises têm destas coisas. Se, por um lado, nos exigem enormes adaptações a condições adversas e representam um desafio extraordinário na capacidade de resolução de problemas; por outro, permitem, na maioria das vezes, uma espécie de renascimento. É quase sempre assim psicologicamente falando, qualquer que seja a crise em questão.

No aqui e agora da crise de covid-19, diria que na entrada e travessia da sexta semana de isolamento estamos em condições de encetar a celebração da Páscoa de dentro de cada um (exclusiva do mundo psíquico/interior profundo), dando lugar à colocação na mesa dos vários pratos e doces que, entretanto, aprendemos, renovando a ementa — que é o mesmo que dizer que estamos em condições de começar a olhar a vida de uma perspectiva diferente.

Hoje, de cada vez que vamos à rua num pequeno e controlado passeio higiénico, ressuscitamos em 30 minutos a essência e o valor da liberdade de movimentos, bem como o prazer de respirar ar puro, de ver as flores a despontar nos jardins, de sorrir para os vizinhos que permanecem nas varandas ou que trazem as compras e se cruzam connosco do outro lado da avenida.

Hoje, de cada vez que recebemos uma chamada de alguém que nos importa, ressuscitamos a alegria da amizade e do amor, da companhia, da partilha, da tranquilidade e da certeza de que vai ficar tudo bem.

Hoje, de cada vez que, através da videochamada, podemos olhar o rosto dos outros, ressuscitamos no lugar interior o reconhecimento que nos confirma a humanidade de sabermos quem somos e para quem somos (o rosto humano reconhecido pelo outro é a peça basilar do nascimento psíquico, conforme nos ensinou René Spitz nas suas experiências com bebés e respectivas mães).

Hoje, de cada vez que pensamos em solidariedade, ressuscitamos em nós a possibilidade de fazermos parte de um todo alargado que atenua e mitiga o senão da solidão. Estamos sós, de mãos dadas com os outros todos.

Hoje, temos conversas improváveis movidas por motes novos e, com elas, ressuscitamos o valor das tertúlias com os amigos e familiares, renovando a arte de construir pontes para o futuro.

Hoje, de cada vez que damos conta de que estamos efectivamente a gerir o nosso trabalho de uma nova maneira, ressuscitamos a capacidade de abertura à mudança e constatamos que estamos ancorados numa nova era cheia de ferramentas incríveis, que facilitam imenso as nossas vidas. A par disto, ressuscitamos ainda a capacidade criativa associada a uma reinterpretação do mundo do trabalho e vemos despontar inúmeras novas ideias para novos negócios, ou outras capazes de renovar/reinventar os já existentes.

Hoje, planeamos mil encontros com as pessoas que amamos com imensos pormenores, como quem reinventa o tamanho do tempo detalhando com entusiasmo o que vamos fazer juntos, onde e quando. Hoje, ressuscitamos a vital capacidade de sonhar com o amanhã, sorrindo!

Vale a pena dizer que cada crise é capaz de inverter o provérbio conhecido que diz que “não há bela sem senão”! Como numa espécie de espelho, esta crise, por ser gigante, faz com que o provérbio se transmute, dando lugar à sua nova versão: “Não há senão sem bela!”

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