Covid-19: venezuelanos que fugiram da fome regressam a um país sem comida

Venezuela corre o risco de desabastecimento alimentar por falta de combustível, numa altura em que milhares dos que saíram por causa da crise económica regressam devido às restrições impostas por causa da pandemia.

Foto
Migrantes venezuelanos acercam-se a um controlo sanitário em Los Patios, na província colombiana de Norte Santander EPA

O Governo da Venezuela racionou a distribuição de combustível pela escassez existente no país e muitos agricultores, que recebem apenas cinco litros por semana, não vão ter suficiente para garantir a distribuição de alimentos nos mercados. E o receio é que dentro de poucas semanas, hortaliças, frutas, leite, tubérculos e carne possam começar a escassear no norte e oriente do país.

Se a Venezuela já vivia em estado de escassez, o que levou a um êxodo de uma parte substancial da sua população (mais de quatro milhões) desde 2015, há perigo de a situação ficar ainda pior, numa altura em que milhares de venezuelanos estão a regressar ao país depois de a pandemia da covid-19 ter levado os governos dos países vizinhos a decretar o isolamento social e o fim da actividade económica não essencial.

Milhares de pessoas regressam sem nada ou quase nada a um país em hiperinflação desde Novembro de 2017, apesar de dois meses seguidos em que os preços subiram pouco mais de 20% (são precisos três meses com variação menor a 50% para sair oficialmente); e com o salário mínimo reduzido ao equivalente a 2,4 dólares, depois de o bolívar ter perdido mais de 13% do seu valor face ao dólar na última semana.

E, tendo em conta que lavar as mãos regularmente é uma das medidas recomendadas para travar a expansão da infecção, onde só 16,7% da população tem acesso contínuo a água potável, de acordo com o Observatório Venezuelano de Serviços Públicos.

“A pouco e pouco, a situação vai piorando: não chegámos ainda ao pico do coronavírus. O país já tinha um problema nutricional e alimentar, como se pode agora fazer frente ao vírus?”, pergunta Aquiles Hopkins o presidente da Fedeagro (Confederação de Associações de Produtores Agropecuários), citado pela France24.

Mercado informal

Desde que o Presidente da Colômbia, Iván Duque, declarou a quarentena no país, a 25 de Março, milhares de venezuelanos que aí sobreviviam no mercado informal decidiram regressar pelo caminho que fizeram há um ou dois anos e tentar as hipóteses na sua terra. O que se passa na Colômbia, repete-se no Peru e no Equador, países que também restringiram as actividades económicas por causa da pandemia e onde residem uns três milhões dos venezuelanos que deixaram o país.

“Venho do Peru. Ali fui apanhado pela Emigração. Expulsaram-me sem me dizer nada, sem motivos ou respostas. Deixaram-me na fronteira do Equador. Do Equador fomos para Bogotá, à intempérie, sem quaisquer recursos. E de ali até aqui, sofrendo. Éramos 600, cada um chegou à fronteira como pôde. Nós não temos culpa do que está a acontecer no mundo”, diz ao La Nación da Argentina Manuel Rengifo, de 21 anos.

Rengifo já tinha conseguido uma relativa estabilidade, vendendo comida com um carrinho nas ruas da capital peruana, Lima, agora está ali, perto da fronteira colombiano-venezuelana depois de dias de viagem a pé e à boleia. Os seus pertences na mochila que leva às costas.

Nova vaga está por vir

Milhares de venezuelanos já regressaram, entretanto. Foi a primeira vaga, os que ficaram mais vulneráveis depois das medidas implementadas nos países vizinhos por causa da pandemia de covid-19. É provável que venha agora uma vaga muito maior, depois do período de quarentena na Colômbia, o país onde mais venezuelanos se instalaram, ter sido prolongado até 27 de Abril.

Luis Guzmán, de 28 anos, perdeu o trabalho de carpinteiro que tinha conseguido em Bogotá por causa da pandemia. Prepara-se agora para se fazer à estrada, a pé, em direcção ao seu país: “Se não vamos, vamos passar mal. Temos que ir antes que as coisas piorem, porque ninguém sabe se alargam mais esta coisa [quarentena]”, conta ao correspondente da BBC na capital colombiana.

Claudia López, a presidente da Câmara de Bogotá, referiu esta semana que só na capital colombiana 450 mil migrantes venezuelanos pediram ajuda, porque muitos deles acabaram por ficar na rua quando deixaram de ganhar dinheiro para pagar as rendas.

“Os bogotanos levam três anos a pagar comida, nascimentos, creches, escolas e damos-lhe empregos. Que pena que o único que não podemos cobrir sejam as rendas. Pedimos ajuda ao Governo nacional. Nem que seja um peso, apenas um, porque todas as outras coisas são pagam pelos impostos dos bogotanos, sem refilar”, afirmou.

Os que regressam à Venezuela não o fazem com ilusões de que a situação possa estar melhor no seu país. A maioria meteu-se ao caminho contrariada. São sobretudo aqueles que viviam da economia paralela, os mais prejudicados pela quarentena, os que regressam agora.

Pelo menos na Venezuela, refere Juan Paracuto, o mais velho dos quatro, há família e amigos, uma rede social a quem recorrer: “Lá, o único problema é a comida, mas uma pessoa tem o apoio da família”.

Guzmán e os três outros venezuelanos que falam para a BBC vão fazer o caminho a pé (“preferimos gastar os 150 mil pesos [35 euros] em comida que pagar um bilhete de autocarro até à fronteira”, dizem), a maioria segue em autocarros que usam documentos falsos para conseguir superar os controlos da polícia, segundo informação dos serviços de migração colombianos.

Mais de 300 venezuelanos ficaram presos no limite de Bogotá com a província de Cundinamarca, um pouco antes da portagem da Auto-estrada Norte. O grupo reuniu dinheiro suficiente para alugar sete autocarros para levá-los até Cúcuta, na fronteira com a Venezuela, mas foram impedidos de seguir viagem por causa das medidas restritivas decretadas na Colômbia.

O Governo colombiano negociou vários corredores humanitários com delegados de Juan Guaidó, que Bogotá reconhece como o Presidente legítimo da Venezuela, mas também com o Executivo de Nicolás Maduro, depois de milhares de venezuelanos se terem aglomerado junto às fronteiras fechadas.

Maduro escreveu no Twitter. “Estamos pendentes dos nossos compatriotas, que, vítimas da xenofobia, decidiram regressar à Venezuela, a sua pátria. Aqui os recebemos de braços abertos, como fizemos com milhões de pessoas que encontraram no nosso país uma terra de paz e esperança.”

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) referiu esta semana que, de acordo com as autoridades venezuelanas, até terça-feira tinham cruzado a fronteira para o estado fronteiriço de Táchira 2500 pessoas. Na quinta-feira, Freddy Bernal, o homem que Maduro colocou a liderar o processo de recepção dos emigrantes venezuelanos em Táchira, afirmava que “nas últimas 48 horas, depois que se decretou a quarentena para todos aqueles que entrem desde a Colômbia, chegaram 2135 venezuelanos”. No cálculo do Governo colombiano, mais 15 mil deverão chegar nas próximas semanas.

A ONU incluiu os migrantes e refugiados venezuelanos no seu plano internacional de resposta ao coronavírus, depois de chegar à conclusão que “as capacidades nacionais estão a ficar saturadas até a um ponto crítico, o bem-estar e segurança dos venezuelanos e das comunidades que os acolheram estão cada vez mais em risco”, assinalaram a Organização Internacional das Migrações e o ACNUR num comunicado em conjunto.

Em colaboração com o Governo colombiano, foram instalados lavatórios em pontos estratégicos do percurso dos venezuelanos até à fronteira. As agências da ONU em conjunto com organizações não-governamentais distribuíram também produtos alimentares e mais de 2600 kits de higiene. Na Colômbia, havia esta sexta-feira 2223 casos positivos de covid-19, que já resultaram em 69 mortos, enquanto na Venezuela há 171 infectados com o coronavírus e nove mortos.

Ao chegar à Venezuela, todos passam pelo protocolo sanitário estabelecido pelo Governo de Nicolás Maduro, que inclui a “desinfecção com hipoclorito”, o controlo da temperatura e um teste rápido para descartar a presença do coronavírus. Segundo Maduro, os retornados que davam positivo no teste para o coronavírus iam “directamente para o hospital”, enquanto para os outros estava estabelecido que passariam por “uma quarentena obrigatória de 14 dias.”

Só que, na quarta-feira, a governadora de Táchira garantia que o seu estado “já estava saturado de venezuelanos regressados pela fronteira” e que isso representava um perigo para a saúde pública, o que obrigou a alterar os protocolos e agora todos aqueles cujos testes dão negativo podem seguir viagem até aos seus destinos.

Uma das medidas que é apontada como tendo ajudado a manter a curva da epidemia aplanada na Venezuela é o isolamento social e as restrições de viagem, a pressão dos milhares de migrantes regressados de países com muito mais infectados e nas condições difíceis que muitos deles se viram obrigados a viajar, representa agora uma pressão extra para o sistema de saúde pública do país que, devido à crise económica e ao embargo dos Estados Unidos, funciona com muitas dificuldades.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários