Os prazos e o modo: retratos legislativos de um estado de emergência de saúde pública

Uma legislação sobre prazos judiciais pretende-se clara, inteligível, que se entenda bem, que se deixa ver bem, não apenas pela intelligentsia jurídica mas, sobretudo, pelos seus destinatários últimos: os cidadãos.

O Governo aprovou o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, tendo por objeto estabelecer medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença covid-19, entre as quais medidas respeitantes a atos e diligências processuais e procedimentais, bem como medidas destinadas a promover o distanciamento social e isolamento profilático.

Nessa sequência, a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, procedeu à: a) ratificação dos efeitos daquele diploma; b) aprovação de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica, sendo que, entre tais medidas, contava-se a prevista no seu art. 7.º, respeitante a um regime excecional para prazos e diligências processuais e procedimentais (na epígrafe da lei “Prazos e diligências”).

Os artesãos do Direito (operadores judiciários, entre outros) têm nos prazos a sua principal matéria prima, os usuários do Direito (todos nós) veem nos prazos a pulsão de vida e a pulsão de morte das circunstâncias posições jurídicas que pretendem fazer valer.

É, portanto, perante este “fresco” que o modo de contagem dos prazos, natureza dos prazos, seus efeitos nos diferentes tipos de processos e procedimentos, suas suspensões e interrupções, e retoma de contagem; o modo como se interpreta a lei que dispõe sobre prazos, tornam sobremaneira relevante a legislação que versa sobre tal matéria.

A legislação, no seu todo, é obra propensa a muitas adjetivações – não raras vezes com qualificações injustas, outras vezes com qualificações que pecam por defeito, e ainda as há em que a própria legislação se auto adjetiva, em forma de encómio, em nota preambular –, mas o adjetivo que mais se lhe preza é o de que seja clara.

Neste âmbito, uma legislação sobre prazos pretende-se clara, inteligível, que se entenda bem, que se deixa ver bem, não apenas pela intelligentsia jurídica, mas, sobretudo, pelos seus destinatários últimos: os cidadãos.

O aludido artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, não cumpriu esse desiderato, o que, foi, desde logo, manifesto pela discussão que se seguiu, seja porque (i) apelou a “atos processuais e procedimentais” (e não a prazos para a prática desses atos), aplicando-lhes “o regime das férias judiciais” (e não o regime da suspensão de prazos) [n.º 1]; (ii) criou como regra nos processos urgentes o regime de suspensão de prazos (quando a regra deveria ser a da continuidade da sua tramitação e a suspensão a exceção) [n.º 5]; (iii) estendeu o regime de suspensão aos prazos administrativos e tributários que, num neologismo jurídico, “corram a favor de particulares” (quando se pretendia referir aos prazos para a prática de atos pelos particulares nesses procedimentos e sem ter o cuidado de excluir desse âmbito alguns procedimentos específicos, como o de contratação pública, cuja tramitação sem suspensões deve ser não só desejada mas impulsionada em ordem à oxigenação da economia) [n.º 6, al. c]; (iv) foi equívoca quanto ao início de produção de efeitos deste regime excecional [art. 10.º].

Todavia, as notícias do nascimento de um seguro regime excecional para prazos e diligências processuais e procedimentais foram claramente exageradas, e eis que o legislador se viu na necessidade de proceder, e bem, a nosso ver, à primeira alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e à segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, o que fez por intermédio da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril.  

Como primeiras impressões da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, e das suas alterações ao art. 7.º, diríamos que veio trazer clareza aos pontos turvos que atrás elencámos. Nesse sentido, veja-se (i) quanto ao regime da suspensão de prazos [n.º 1]; (ii) quanto aos processos urgentes [n.º 7]; (iii) quanto à extensão do regime de suspensão aos prazos administrativos e tributários [n.º 9, al. c) e ainda o aditado art. 7.º-A, respeitante  a prazos em procedimentos de contratação pública]; (iv) quanto ao início de produção de efeitos deste regime excecional [o interpretativo artigo 5.º e, em processos urgentes, o n.º 2 do artigo 6.º].

Sucede, porém, que a Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, ofertou-nos um pouco claro (lá está!) dispositivo: o n.º 5, al. a), do art. 7.º ("[o] disposto no n.º 1 não obsta: a) [à] tramitação dos processos e à prática de atos presenciais e não presenciais não urgentes quando todas as partes entendam ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente").

Fica a questão: o espírito do legislador é o de que a regra do regime de suspensão de prazos neste período de exceção não afasta a possibilidade das partes realizarem os atos e as diligências que se mostrem necessários(as) a assegurar uma tramitação regular, fluente e organizada do processo (quando tal não prejudique a suspensão de prazo para a prática de ato que corra a favor de, pelo menos, uma das partes), ou àquilo que entendam ser  a realização de ato e diligência necessário a uma adequada defesa da sua posição no processo (por considerarem estarem reunidas as condições para um exercício sem peias e condicionalismos de tal defesa); e conquanto que essa realização seja assente no consenso expresso dos sujeitos processuais de que a sua efetivação não faz perigar as medidas destinadas a promover o distanciamento social?

Não sendo claro, diríamos que sim, que será essa a razão de ser da norma, tanto mais que essa seria  uma interpretação em harmonia com os interesses prevalentes com que o “ar do tempo” nos desafia: a observância do princípio da prossecução do interesse público (radicado na adoção prevalente de medidas legais adequadas a esta realidade excecional de proteção de saúde pública) com o respeito, naquele contexto, pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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