Suspender ou não suspender, eis a questão

Apesar das dificuldades na articulação destas normas, entendo que os prazos não se encontram suspensos, não podem estar, não só em face da interpretação das citadas normas, mas sobretudo em face do estado de emergência nacional e da grave crise planetária que atravessamos e que convoca mais do que nunca a intervenção dos Tribunais e da Justiça. Se se entender que o atual regime pode suscitar dúvidas, e suscita, então urge retificá-lo para o tornar inequívoco.

A Lei 1-A/2020, de 19 de março, que estabelece as “Medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença covid-19”, regula a matéria dos prazos no artigo 7.º.

O n.º 1 do citado artigo [1] estabelece que, sem prejuízo dos números seguintes, aos atos processuais se aplica o regime das férias judiciais, enquanto durar a situação atual que impõe estas medidas legislativas excecionais.

Ou seja, o que este preceito estabelece não é a aplicação do regime de férias judiciais qua tale, mas sim um regime específico, mitigado pelo disposto nos números seguintes do mesmo artigo. A expressão “Sem prejuízo dos números seguintes” é inequívoca. Assim, todos os números seguintes contêm especificidades de regime que fazem com que o regime de férias referido no n.º 1 do normativo em causa seja mitigado [2].

A interpretação deste artigo, como determinam os cânones da hermenêutica jurídica, exige o recurso ao elemento teleológico: o espírito da lei. Ora, é consabido que estas medidas legislativas excecionais visam combater a pandemia atual, sendo um dos principais meios desse combate o isolamento social. Mas também é consabido que essas medidas visam encontrar o difícil equilíbrio entre o isolamento social e a continuidade da vida económica. 

Dispõe o n.º 8 do mesmo artigo: “Sempre que tecnicamente viável, é admitida a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente por teleconferência ou videochamada.

Atenta a referida remissão expressa do n.º 1, através da expressão “sem prejuízo do disposto nos números seguintes”, o regime do n.º 8, um dos números seguintes, contém uma das especificidades deste regime de férias judiciais mitigado.

Está aqui inequivocamente em causa evitar contactos presenciais e combater a pandemia atual. Daí que, desde que tecnicamente viável, possam praticar-se atos através de meios de comunicação à distância desde que sejam adequados.

Ora, podendo um conjunto muito alargado de atos processuais ser praticados pelo Citius, plataforma informática que é utilizada pelos agentes forenses nos Tribunais Judiciais, e que se encontra em pleno funcionamento, significa que todos esses atos podem ser técnica e adequadamente praticados à distância. O mesmo se diga acerca do Sitaf.

O Legislador, neste particular, ao concretizar o conceito de “meios de comunicação à distância adequados”, exemplificando com teleconferências e videochamadas, vai além da prática atual, posto que não está generalizada atualmente nos tribunais a realização de audiências através destes meios, sendo em regra presenciais.

Inelutavelmente, o Citius cabe no conceito de “meios de comunicação à distância adequados” e constitui um meio normal de prática de atos processuais por comunicação à distância, em pleno funcionamento e devidamente experimentado. Assim, não se alcança como poderá deixar de continuar a ser utilizado, se são agora permitidos outros meios inusuais e não testados.

Se não for assim, teríamos uma situação incompreensível que seria a de se poderem realizar audiências por videoconferência, situação que dificilmente se verificará por falta de meios e, sobretudo, falta de prática, e não se poder utilizar o Citius para praticar atos processuais com os prazos a correr. Incompreensível e violador da realização da Justiça e, já agora, da manutenção da atividade no setor forense que tem uma expressão não despicienda na economia nacional. Ficariam milhares de advogados parados em casa, quando poderiam prosseguir a sua atividade profissional nos processos pendentes, fazendo com que a defesa das partes envolvidas nesses processos avançasse e, consequentemente, permitindo que se realizasse a Justiça. Se assim não fosse, haveria, a meu ver, uma denegação de Justiça, violando-se o artigo 20.º da Constituição.

Vejamos um exemplo que bem ilustra as injustiças a que poderia levar uma interpretação que defendesse a suspensão dos prazos. Imagine-se um prazo para contestar uma ação que terminou no dia 13 de março passado. Se se entendesse que os prazos se encontram suspensos, isso significaria que, podendo o réu praticar o ato até ao terceiro dia útil seguinte ao final do prazo mediante o pagamento de uma multa, poderia beneficiar de um prazo que poderia ir, segundo a expetativa atual de evolução da pandemia em Portugal, até Junho. Ou seja, jogando com a multa, o réu beneficiaria de um prazo de mais de 90 dias, em vez dos 30 dias a que tinha direito e que, para mais, já tinha decorrido. Isto, quando se poderia praticar esse ato pelo Citius, sem qualquer perigo para a saúde pública e com toda a segurança técnica. Estar-se-ia, perante uma situação destas, a pactuar com o aproveitamento processual, de que atrás se falava, o que seria intolerável.

Por outro lado, dispõe o n.º 5 do mesmo preceito: “Nos processos urgentes os prazos suspendem-se, salvo nas circunstâncias previstas nos n.ºs 8 e 9.

Aqui, é o único ponto em que o artigo 7.º estabelece expressamente que os prazos judiciais se suspendem e consagra uma diferença de regime importante relativamente ao regime das férias, no qual, diversamente, os prazos dos processos urgentes não se suspendem. Mas, será mesmo assim?

As exceções consignadas neste n.º 5 ao regime da suspensão dos prazos nos processos urgentes são as que constam dos n.°s 8 e 9 do mesmo artigo. Nesses números, do que se trata é de atos processuais praticados através de meios à distância, designadamente teleconferência ou videochamada, e de atos e diligências urgentes realizadas presencialmente em casos em que estejam em causa direitos fundamentais. Valem aqui as considerações já acima aduzidas acerca do n.º 1 do artigo 7.º, especialmente no que concerne à aplicabilidade do Citius. Significa assim que se trata de uma exceção que, na prática, poderá ser a regra, excluindo os atos presenciais. Ainda que com entendimento diverso do nosso, o o juiz José Joaquim Fernandes Oliveira Martins também parece entender que, apesar da suspensão dos prazos nos processos urgentes, os tribunais poderão continuar a produzir à distância despachos e decisões e a notificá-las [3]. Não se alcança qualquer razão para que os advogados não possam também praticar atos à distância, o que, reitere-se, é permitido pelo referido n.º 8.

E nem se diga que estas circunstâncias constituem apenas exceção à suspensão dos prazos nos processos urgentes consagrada no n.º 5, como já foi defendido [4], porquanto, além do que atrás se aduziu, não faria sentido criar dois números autónomos no artigo 7.º; se fosse o caso, bastaria abrir duas alíneas no n.° 5.

Sob pena de petição de princípio, não se pode assumir que os prazos estão suspensos só porque se estabelece no n.º 1 que se aplica aos atos processuais o regime das férias judiciais. Isto porque nesse n.º 1 se salvaguarda o disposto nos números seguintes, sendo assim necessário analisar esse conjunto de normas para se apreender o regime de férias que está aqui em causa e evitar o erro, a nosso ver, de partir da ideia apriorística de que o Legislador remeteu para o regime das férias sem mais. Já vimos que não e que a ratio legis impõe que assim não seja. Aliás, não é irrelevante que o Legislador não tenha estatuído, simplesmente, que os prazos estavam suspensos. Nem referiu prazos, mas apenas atos, que conceptualmente são realidades distintas. E já distinguiu esses conceitos, ao utilizar a expressão prazo no citado n.º 5.

Então, afinal, em que consiste o regime de férias mitigado? A esta pergunta responde claramente o n.º 1 do artigo 7.º,  conjugado com os n.ºs 8 e 9 do mesmo preceito: aplica-se o regime das férias aos atos processuais. Logo, os tribunais não estarão a funcionar normalmente e, a não ser no caso do n.º 9 em que estejam em causa direitos fundamentais, não se realizará qualquer ato presencial. É o combate da pandemia que o impõe.

É o mesmo combate que também impõe que a economia continue e que se recorra ao teletrabalho. A Justiça não é um setor à parte. É possível esse teletrabalho e existem ferramentas já em pleno uso em tempos de normalidade, sendo a entrega dos atos processuais realizada nacionalmente por meios informáticos. Não se alcança qualquer razão que justifique outra solução. Se houver algum profissional forense que não possa fazer desde casa, então, que o prove e que isso constitua justo impedimento, conceito que já foi alargado e adaptado ao combate à pandemia, pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, e, em particular, pelo respetivo artigo 14.º.

Concluindo: apesar das dificuldades na articulação destas normas, entendo que os prazos não se encontram suspensos, não podem estar, não só em face da interpretação das citadas normas, mas sobretudo em face do estado de emergência nacional e da grave crise planetária que atravessamos e que convoca mais do que nunca a intervenção dos Tribunais e da Justiça. Se se entender que o atual regime pode suscitar dúvidas, e suscita, então urge retificá-lo para o tornar inequívoco.

[1] “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença covid-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública.”
[2] Cfr José Joaquim Fernandes Oliveira Martins, A Lei n.º1-A/2020, de 19 de março – uma primeira leitura e notas práticas. No sentido de que não são férias judiciais, desde logo porque os juízes continuam ao serviço mas à distância ou em falta justificada. (…)
[3] ibidem
[4] ibidem

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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