“Quando eu morrer, ele morre”

Em 2005, na véspera de ser publicada mais uma aventura de Astérix & companhia, o seu criador, Alberto Uderzo, falou em exclusivo ao PÚBLICO, entrevista que aqui reproduzimos parcialmente.

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Yves Herman/reuters

Albert Uderzo quis ser palhaço, mecânico. Ficou como um dos criadores do mais famoso herói gaulês. A pretexto da sua morte, anunciada pela família esta terça-feira de manhã, aos 92 anos, reproduzimos parcialmente a última entrevista que deu em exclusivo ao PÚBLICO, em 2005. O título deixava então antever uma posição que Uderzo viria, quatro anos depois, a alterar, ao ceder ao grupo Hachette, número um da edição em França das aventuras dos irredutíveis gauleses, a autorização para continuar as aventuras de Astérix depois de morrer. 

Em Outubro de 2005, Uderzo estava com 78 anos e na véspera do lançamento de uma nova aventura de Astérix, rodeada de todo o secretismo. Dez meses antes tinha arrancado em França uma gigantesca operação de marketing para preparar o lançamento de Le Ciel lui Tombe sur la Tête (na edição portuguesa da ASA, O Céu Cai-lhe em Cima da Cabeça). Quase nada se sabia sobre o enredo, cuidadosamente resguardado da curiosidade pública e dos media. A entrevista que deu na altura e agora reproduzimos foi editada.

O que vai acontecer na nova aventura de Astérix e Obélix?
Essa é a pergunta que eu mais temia. Há uma ordem, que me foi transmitida por toda a equipa que trabalha na história, que me impede de revelar o que quer que seja. Aliás, interrogo-me se eu próprio tenho o direito a sabê-lo. A única coisa que posso dizer-lhe é que se trata de um álbum que vai fugir à tradição. Quanto ao resto, queremos fazer uma grande surpresa aos leitores e é por isso que, como no passado, mantemos o silêncio sobre o novo episódio até ao seu aparecimento. É também para evitar que haja demasiada discussão antes do aparecimento daquele que será o 33.º álbum da série [o lançamento mundial de Le Ciel lui Tombe sur la Tête, em português O Céu Cai-lhe em Cima da Cabeça, foi a 14 de Outubro com oito milhões de exemplares distribuídos simultaneamente em 27 países e em meia dúzia de línguas].

Qual é a primeira coisa que vai fazer após a saída do novo álbum?
Partir para um sítio qualquer sossegado para descansar alguns dias de todo o stress acumulado. O planeamento do lançamento é sempre muito apertado e exigente, inclusive para mim próprio, pois obriga-me a terminar o trabalho dentro dos prazos estabelecidos. No caso de Le Ciel lui Tombe sur la Tête, a história teve de ficar impreterivelmente acabada até ao final de Maio passado, seguindo-se o trabalho de cor, a produção propriamente dita e todas as demais fases da edição, incluindo a realização das várias edições em línguas estrangeiras, traduções etc.

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São conhecidas as suas distâncias face aos juízos dos críticos. Continua a manter a mesma posição?
Desde há algum tempo que estou rodeado de colaboradores que têm como objectivo fundamental manter o meu moral em alta. Ou seja, têm o bom senso de só me mostrar as críticas favoráveis e me escondem as que são negativas.

Nem umas nem outras influenciam o seu trabalho?
Pelo contrário! Sabe por que razão me encontro hoje aqui a falar consigo, na sede da editora que eu próprio criei? Por causa dos media! Após a morte de Goscinny, os media ignoraram-me por completo. Por razões que desconheço completamente, todos os órgãos de comunicação — sem excepção — decretaram a morte de Astérix no dia em que o meu malogrado amigo René Goscinny nos deixou. Isso revelou, na ocasião, um desconhecimento total do meu trabalho, pois afirmavam que o desenho não tinha a menor importância e o que contava era a história contada.

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É verdade que Goscinny era brilhante no seu trabalho, sendo muito difícil encontrar um substituto à sua altura. Fui-me abaixo e estive dois anos sem me apetecer fazer nada. Cheguei a pensar que Astérix estava morto e que não valia a pena continuar sem Goscinny. E muitos confrades declaravam nos jornais que quem se arriscasse a pegar de novo em Astérix ia bater com a cabeça na parede. Confesso que fiquei picado com aquilo que nem sequer eram críticas, mas, repito, ignorância total do nosso modo de trabalhar. O meu amor-próprio e o meu orgulho ficaram espicaçados e, por isso, decidi arriscar: regressei a Paris para continuar a série. Sabia que a minha decisão era arriscada e, por isso, decidi criar a minha própria empresa para não envolver nenhum editor. Apesar de não saber bem no que me estava a meter, também tomei a decisão de não recorrer a nenhum outro argumentista que ocupasse o lugar de Goscinny na série. O primeiro álbum a solo correu muito bem. Sabia que com a segunda aventura escrita e desenhada por mim as coisas eram mais delicadas, pois já não podia contar com o benefício da dúvida. Mas também correu bem e a aventura continuou até hoje. Por isso, tenho de agradecer a todos os jornalistas que não acreditaram em mim.

Ser um autor de sucesso, como é o seu caso, condena-o a uma existência solitária?
Oh, a solidão. É sobretudo a solidão da idade. Já perdi muitos amigos, e não forçosamente amigos com quem trabalhei — estão nesta categoria homens como Franquin ou Peyo, que eu adorava. Mas há outros, que deixaram de trabalhar, como Gotlib ou Roba, que não tenho hipótese de reencontrar. Eu e Goscinny fazíamos poucos álbuns mas trabalhávamos muito para a imprensa belga. Isso desenvolveu em nós uma profunda simpatia pelos autores belgas, mais do que pelos criadores franceses. Para confraternizar dividíamos a distância entre nós e encontrávamo-nos a meio caminho num local que tinha um belíssimo restaurante. Mas isso acabou tudo e o que ficou é um pouco como a árvore que sobreviveu sozinha ao desastre nuclear.

Após tantos anos de trabalho, sente-se de algum modo prisioneiro da sua própria criação (Astérix)?
Ah, mas eu não me sinto nada prisioneiro, pois só tenho de fazer um álbum de Astérix de cinco em cinco anos. Ou seja, é em plena liberdade que me ocupo dos restantes assuntos da empresa com a minha filha, e felizmente rodeado de excelentes colaboradores. Pessoalmente, seria incapaz de exercer a minha profissão e assegurar a gestão, pois sou um falso editor que apenas edita o que faz e nada mais. E não me vejo a produzir, editar e vender dezenas de álbuns por ano. Quando chega a altura de realizar um álbum faço-o com grande prazer porque não tenho de me convencer de que é mesmo necessário deitar mãos à obra por causa do dinheiro que vou ganhar ou coisas assim. Mas é verdade que os meus colaboradores me pressionam um pouco para fazer uma nova história.

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O meu verdadeiro problema é encontrar uma boa ideia, o que não é fácil ao fim de 30 álbuns. Quando a boa ideia está encontrada, o que vem a seguir é aquilo que faço há quase 60 anos —desenhar é um prazer que senti ainda esta manhã, antes de vir para esta entrevista, quando estava sentado à mesa de trabalho, mas que me deixa feliz quando chega ao fim e tenho a certeza de que obtive alguma coisa.

Continua a manter uma disciplina pessoal de trabalho?
Sim. Mas como acontece com todos os autores — pelo menos, é o que suponho — o meu trabalho não tem hora fixa de começar nem de acabar. Além disso, uma vez por semana, às terças-feiras, participo numa reunião de trabalho da empresa para ficar ao corrente do que se passa na editora.

Se não fosse criador de banda desenhada, o que gostaria de ter sido?
Quando era miúdo, ainda nada indicava que viria um dia a fazer o que faço, tinha um sonho: ser palhaço. Eu nunca tinha ido ao circo, pois os meus pais não tinham meios para me proporcionar esse prazer. Mas foi nessa altura que vi um grande cartaz sobre uma família de palhaços famosos na época, um dos quais tinha o meu nome próprio (Albert) e um grande nariz vermelhão. Mais tarde quis ser mecânico. Um dia o meu irmão pegou em desenhos meus e levou-os a uma editora, onde ficaram muito surpreendidos com a qualidade dos desenhos de um miúdo. O resto já é uma história conhecida.

Como vê o futuro de Astérix?
Há uma coisa que respondo a todos os que me perguntam o que vai acontecer depois da minha morte: Astérix não voltará a existir na banda desenhada. Poderão ser feitos filmes, ser editados álbuns, ser concedidas licenças, etc., mas não me agrada a ideia de que o personagem pudesse ser deformado completamente por quem viesse a pegar nele.

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