Profissionais de saúde: os soldados da vida

O Ministério da Saúde está em condições de desenvolver uma política tendente à revitalização do SNS. E uma coisa é já evidente para quem tinha dúvidas: os soldados da vida estão firmes e determinados em avançar na defesa da nossa Saúde e do nosso SNS. Melhores aliados do que estes, o Ministério da Saúde não encontra. Façamo-nos ao caminho!

Neste momento tão preocupante, resultante da situação pandémica ao covid-19, vêm à tona múltiplos problemas da organização dos serviços de saúde, do nível de adequação dos seus recursos e da efetiva capacidade em mobilizar as comunidades para objetivos de defesa do bem comum.

É nos grandes embates de graves problemas de saúde com importante magnitude que os sistemas de saúde testam as suas verdadeiras capacidades. Desde há 100 anos, este é o problema mais sério que é colocado à generalidade dos países no plano humano e sanitário. Depois de alguns “avisos” epidémicos no início deste século, o que está agora aí é muito grave.

A forma como esta epidemia irrompeu, como se manifestou e como se propagou acabou por surpreender muitos técnicos competentes. A partir do momento em que a evolução da situação começou a mostrar que não encaixava nos modelos anteriores, houve diversos países europeus que não mostraram agilidade de decisão política nem estrutura organizativa do seu sistema de saúde para fazer face à crescente dimensão da ameaça.

A título de exemplo, importa referir que a Itália, a Espanha e mesmo a França estão a braços com uma situação muito difícil e de consequências sociais, económicas e humanas ainda imprevisíveis. Para procedermos a qualquer avaliação de desempenho institucional, ou não, temos sempre de dispor de parâmetros comparativos em situações análogas.

O governo inglês, numa conferência de imprensa há alguns dias atrás com a presença do seu primeiro-ministro e da autoridade de saúde, veio desvalorizar a actual situação e defender aquilo que designou como “imunização em grupo”, numa inacreditável massiva experimentação humana de tão triste memória num passado histórico não muito longínquo. Passados uns dias, acabou por recuar em toda a linha por via inclusive das fortes preocupações logo manifestadas pela OMS (Organização Mundial de Saúde).

Nos Estados Unidos, com a ausência de medidas preventivas durante largas semanas e a existência de um sistema de saúde desarticulado e encarado como plataforma comercial de venda de cuidados de saúde, as consequências podem ser catastróficas. O mesmo se passará no Brasil, onde chefes de seitas religiosas extremistas com grande influência política em múltiplos detentores de altos cargos políticos têm propalado à exaustão que tudo isto não passa de uma “estratégia de satanás para induzir o pânico nas pessoas”.

Apesar de tudo, o nosso país e o nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS) têm vindo a aguentar este fortíssimo embate, com consequências, em igual período de evolução, menos graves que a generalidade dos países europeus.

A Direcção-Geral da Saúde (DGS) divulgou atempadamente as orientações técnicas e preventivas a adoptar, insistindo no seu cumprimento rigoroso, e a equipa do Ministério da Saúde tem feito uma abordagem responsável da evolução da situação, assumindo diariamente perante os cidadãos o aumento do número de casos infectados.

No nosso país, poderia já ter sido feito mais e melhor? Podemos sempre considerar isso!

Esta guerra está tornar mais visíveis algumas questões fundamentais:

(i) Apesar da contínua degradação das condições de trabalho e dos níveis salariais há largos anos, os profissionais de saúde têm mostrado uma extrema abnegação profissional, cívica e humana mesmo em muitos casos não dispondo dos meios de protecção mais adequados. Nada os tem feito recuar perante um enorme perigo de vida pessoal e de contágio dos seus familiares directos, muitos deles filhos menores. Trabalhando horas ininterruptas e muito para além da sua carga horária diária, estes profissionais têm assumido esta guerra terrível como verdadeiros soldados da vida. Não é por acaso que largas dezenas de médicos, por exemplo, já estão contaminados e alguns deles em unidades de cuidados intensivos.

(ii) A aplicação ao sector da Saúde, há mais de 20 anos, por sucessivos Ministérios das Finanças, de uma lógica de asfixia de investimentos e de esvaziamento da adequação de meios técnicos e profissionais, mostra hoje os seus preocupantes resultados práticos no desempenho dos serviços públicos de saúde. Tem sido a lógica da financeirização da Saúde sem qualquer preocupação social e humana. A única preocupação é “o deve e o haver” ao bom estilo da mercearia de bairro dos tempos antigos.

(iii) Alguns dos principais hospitais públicos adoptaram uma grave posição de incumprimento das medidas preventivas difundidas pela DGS e não acautelaram em tempo útil a aquisição de material de protecção elementar.

(iii) Em múltiplos serviços de saúde verificou-se não existirem delineados circuitos de circulação separados para os diferentes estratos profissionais, nomeadamente para pessoal na primeira linha assistencial e o que se encontra envolvido em outras actividades. Ou seja, ausência de organização interna básica.

(iv) As equipas de saúde pública foram a tempo inteiro para o terreno em estreita articulação com a DGS e os departamentos regionais de saúde pública, num trabalho incessante, garantindo o adequado encaminhamento de diversos casos suspeitos, a validação de casos, o acompanhamento de contactos e medidas de interrupção das cadeias de transmissão.

Após este dramático embate, existem muitas coisas que não poderão ficar mais como dantes:

(i) A gestão pública dos serviços de saúde não pode continuar a dispor desta impunidade de actuação, da ausência de avaliação do seu desempenho e da ausência de prestação pública de contas da sua actividade. É urgente uma Carta da Gestão Pública da Saúde.

(ii) O financiamento dos serviços públicos de saúde não pode estar dependente de acessos de bom humor de qualquer ministro das Finanças. Os serviços têm de dispor das verbas contratualizadas em função da missão que lhes está atribuída ao serviço dos cidadãos e da garantia do seu direito constitucional à saúde.

(iii) A articulação tão necessária, a nível local, entre diferentes níveis de cuidados tem de ser encarada numa perspectiva funcional com base nos sistemas locais de saúde.

(iv) Tem de se implementar uma política de separação de sectores, que comece, desde logo, por não utilizar dinheiros públicos, dos nossos impostos, para viabilizar negócios privados na saúde.

(v) As carreiras profissionais na saúde têm de ser redinamizadas e tornadas de novo atractivas, tendo bem presente que têm constituído instrumentos eficazes da garantia da qualidade dos respectivos exercícios profissionais.

(vi) As equipas de saúde pública têm de estar sempre activas no terreno, preparadas para as epidemias e para as endemias. No caso dos médicos de saúde pública e das autoridades locais de saúde, estes não podem, com tem acontecido há largos anos, estar dias seguidos enfiados num gabinete a fazerem juntas médicas de incapacidade e exames médicos de recursos.

O Ministério da Saúde está em condições de desenvolver uma política tendente à revitalização do SNS. E uma coisa é já evidente para quem tinha dúvidas: os soldados da vida estão firmes e determinados em avançar na defesa da nossa Saúde e do nosso SNS. Melhores aliados do que estes, o Ministério da Saúde não encontra. Façamo-nos ao caminho!

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