Carta da Gestão Pública da Saúde
A qualidade da gestão pública influi decisivamente no desenvolvimento humano e nas bases materiais para o desenvolvimento económico.
A qualificação e a dinamização do nosso Serviço Nacional de Saúde necessita, no actual contexto, de diversas medidas estreitamente articuladas e de implementação urgente como, por exemplo, de uma nova legislação de finanças específica para a saúde, de uma carta da gestão pública da saúde, de um programa nacional da qualidade na saúde e de uma política de recursos humanos dignificante e atrativa.
No que se refere à Carta da Gestão Pública da Saúde, importa desde logo começar por desmontar a operação propangandística neoliberal de caluniar a gestão pública e de dissimular os objectivos da gestão privada, misturando tudo e argumentando que o mais importante é prestar os serviços seja por via pública ou privada.
Uma das operações teóricas e políticas mais bem-sucedidas do neoliberalismo foi instaurar os debates em torno da oposição estatal/privado.
A deslocação do debate para este eixo traduziu-se numa situação de favorecimento das teses neoliberais, em que o estatal é caracterizado como ineficiente, aquele que cobra impostos e desenvolve maus serviços à população, como burocrático, como corrupto, como opressor, enquanto que o privado é promovido como espaço de liberdade individual, de criação, de imaginação, de dinamismo.
De facto, o privado não constitui a esfera dos indivíduos, mas representa os interesses mercantis, como se verifica nos processos de privatização, que não se traduziram em processos de desestatização em favor dos indivíduos e beneficiaram as grandes corporações.
Por outro lado, dentro do próprio Estado desenvolve-se, de forma surda ou aberta, o conflito e a luta entre os que defendem os interesses públicos e os interesses mercantis, entre o que Pierre Bourdieu chamou de braços esquerdo e direito do Estado.
Nesse sentido, a polarização essencial não se verifica entre o estatal e o privado, mas entre o público e o mercantil (Emir Sader).
A gestão pública e a gestão privada têm finalidades muito diferentes, embora existam algumas técnicas de gestão que podem ser comuns.
A gestão pública tem como foco fundamental o bem comum da sociedade e a sua evolução civilizacional, a gestão privada está vocacionada, como é lógico, para o lucro, o consumo e o negócio.
A gestão pública existe para atingir uma missão que é considerada socialmente valiosa, a gestão privada existe para maximizar o património dos accionistas, tendo com critério de bom desempenho o resultado financeiro.
A gestão pública visa a criação de valor público e a gestão privada visa ganhar dinheiro para os seus acccionistas e proprietários mediante a produção de bens e serviços vendidos com lucro.
As organizações públicas têm um controle político do Estado por meio de eleições. Já nas empresas privadas, o controle é exercido pelo mercado, por meio da concorrência entre as companhias, e pelos accionistas.
É possível conciliar o bem comum e o desenvolvimento social com a maximização dos lucros dos accionistas privados?
Na gestão pública, os accionistas são os cidadãos contribuintes.
A qualidade da gestão pública influi decisivamente no desenvolvimento humano e nas bases materiais para o desenvolvimento económico.
Nesse sentido, desde o final da década de 1980, quando um Governo presidido por Cavaco Silva decidiu liquidar a gestão democrática dos serviços de saúde e instaurar o regime de comissariado político com nomeações arbitrárias de clientelas partidárias, que temos assistido, na grande maioria dos casos, a uma degradação contínua da gestão dos serviços públicos de saúde, a uma impunidade de actuação dos nomeados, sem prestação de quaisquer contas e sem qualquer tipo de responsabilização pelos descalabros da sua acção gestionária.
São conhecidos diversos casos de indivíduos que, seja qual for a cor partidária do Governo em funções, se vão mantendo nas nomeações mesmo diante de resultados desastrosos de gestão e da capacidade de resposta dos serviços.
É neste patamar que se encontra um dos pontos nucleares para a superação do actual estado das coisas no SNS.
Deste modo, na minha opinião, impõe-se elaborar e implementar uma Carta da Gestão Pública da Saúde que estabeleça, entre outros, os seguintes princípios gerais:
- Consagração de uma gestão democrática e participada.
- Definição de um plano global a nível de cada serviço de saúde, com os seus objectivos estratégicos , a sua missão e a sua visão metodológica de desenvolvimento das suas actividades para responder às necessidades futuras do contexto social, demográfico e epidemiológico onde se insere. Os objectivos institucionais determinam os processos a realizar.
- Criação de espaços de participação dos profissionais de saúde na definição dos objectivos estratégicos de cada estabelecimento de saúde.
- Definição de indicadores para o controlo dos processos de gestão.
- Processos de avaliação dos serviços públicos de saúde.
- Estabelecimento de uma relação operacional entre os resultados das avaliações e as atribuições orçamentais.
- Criação de níveis intermédios de gestão dotados de maior autonomia funcional, como pode ser o caso dos centros de responsabilidade integrados devidamente discutidos e negociados com as organizações sindicais do sector.
- Integral respeito e dinamização das hierarquias técnico-científicas dos profissionais de saúde.
- Assegurar a participação cidadã nos serviços de saúde, encarada como a garantia de que as actividades desenvolvidas se dirigem à satisfação das necessidades dos cidadão e da sociedade e não se revelam inúteis e em desperdício de recursos.
Esta satisfação das necessidades dos cidadãos é, nas instituições públicas, o foco mais importante.
- Situar a inovação como pedra angular das instituições públicas de saúde, o que supõe uma visão de futuro e uma gestão contínua da formação, do conhecimento e da informação.
- Estabelecimento de parâmetros que assegurem uma gestão no respeito pelos valores da independência, da transparência e da imparcialidade a nível das decisões tomadas, como devem estar presentes num organismo público.
- As administrações terão de prestar contas públicas pelo trabalho desenvolvido e pelas opções tomadas.
- Os membros das administrações e de cargos intermédios de gestão devem estar obrigados a apresentar publicamente uma declaração de interesses onde sejam explicitadas, nomeadamente, as ligações ocorridas nos últimos 5 anos com outros actores do sector da saúde como indústrias de saúde/entidades privadas, associações de utentes, organizações científicas e outros organismos públicos, como acontece, por exemplo, em França.
Os serviços públicos de saúde não conseguem aguentar mais esta situação de gestão militarizada e de uma ausência chocante de responsabilização das administrações, que não são capazes, sequer, de dialogar com os profissionais da instituição.
Ou temos uma gestão pública dinâmica e focada em responder às necessidades e expectativas dos cidadãos contribuintes ou o direito constitucional à saúde será dramaticamente esmagado pelo avolumar das contradições insanáveis.