Entre a ficção e a realidade: aquilo que podemos (e devemos) aprender com Ensaio Sobre a Cegueira

“A pior cegueira é a mental, que faz que com que não reconheçamos o que temos à frente”, escreveu José Saramago. Esperemos que esta máxima oriente as nossas ações durante não só este período mais negro da História, mas também no futuro.

“Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”, afirmou José Saramago aquando da apresentação pública de Ensaio Sobre a Cegueira, no ano de 1995. O fator diferenciador da obra mencionada – baseada na epidemia da cegueira branca, inexplicável e sem cura – é o facto de o enredo se desenrolar num espaço temporal que pode decorrer ontem, hoje ou amanhã. De cariz visionário, volvidos 25 anos, relaciona-se intimamente com a pandemia de coronavírus que vivemos.

Ao refletir acerca deste livro, entendi que existem pontos de análise imperativa. Em primeiro lugar, a identificação de elementos que mostrem a necessidade de um agir ético. A cegueira branca é uma epidemia que se alastra por uma cidade e, como tal, o Governo decide que a melhor opção a tomar é internar os doentes num hospital abandonado. O que será válido numa situação de luta pela sobrevivência? O ser humano segue os seus princípios em momentos onde a vida e a morte se aproximam? Estas e outras perguntas podem surgir, pois a parcela da população que se encontra cega está vulnerável, não sabe o que há-de fazer e muitos entram em desespero, porque perder um dos sentidos enquanto se conduz de regresso a casa ou enquanto se realizam atividades diárias é aterrorizador. Porém, existe uma mulher que não perdeu a visão e está junto daqueles que não tiveram essa sorte. Na minha opinião, os elementos que mostram a necessidade de um agir ético são: todos os indivíduos sofrem da mesma enfermidade e, sem uma determinada organização e elevado instinto de justiça e sobrevivência, não conseguem continuar a lutar; a ética faz-nos questionar os princípios orientadores da vida humana, as normas e os respetivos fundamentos, o valor da existência de cada ser e, acima de tudo, uma mulher tem a vantagem ou desvantagem de ver mas acaba por lidar diariamente com quem age de acordo com critérios antagónicos de racionalidade e irracionalidade. Que código e valores morais norteiam o nosso comportamento quando açambarcamos grandes quantidades do mesmo produto porque acreditamos que os stocks dos supermercados não serão repostos ou quando passeamos calmamente pelas ruas, sem qualquer tipo de proteção como luvas ou máscaras, não pensando naqueles que fazem parte do “grupo de risco” como idosos, diabéticos, hipertensos ou doentes cardíacos?

Em segundo lugar, importa realçar a necessidade de provar em que medida o eu necessita do outro e das instituições. O eu não vive isolado do outro. Cada ser humano habita num determinado local, está inserido num meio, desempenha papéis específicos e não se encontra sozinho. Naquilo que diz respeito às instituições, este conceito desenvolve-se do núcleo familiar para o exterior: o outro é qualquer pessoa que exista em nosso redor e a coexistência social exige normas, valores e padrões sociais. Instituição deriva do vocábulo sta, integrado na palavra estabilidade, e significa que a primeira é equilibrada e, apesar das reorganizações existentes, possui um grau de perdurabilidade. A palavra “instituição” pode referir-se a várias comunidades, como a familiar ou a escolar, mas também a estruturas privadas, à indústria, ao comércio, etc. Nas diversas etapas da nossa vida, as instituições estão sempre presentes e as regras são essenciais para a nossa integração e formação. Se a moralidade é a forma como os seres humanos se integram numa determinada sociedade e cumprem as normas morais, podemos dizer que em Ensaio Sobre a Cegueira o certo ou errado, o amoral, o moral, o bom ou o mau, etc., são constantemente questionados e, se a moralidade é essencial na organização de uma sociedade, retrata na perfeição a ausência do cumprimento das atitudes e condutas que são esperadas de um indivíduo. À medida que nos envolvemos na história, compreendemos que o grupo que sofria de cegueira branca foi colocado à sua mercê num hospital abandonado, porque o Governo (que deve gerir os conflitos e organizar uma determinada sociedade política) decidiu que essa era a melhor escolha para que o resto dos habitantes não fossem contagiados. É esse o papel de uma instituição que deve zelar pelo bem dos cidadãos? Quando apenas existe o eu e o outro, qual será o resultado dessa relação? No caso português, no início da quarentena voluntária, dezenas de habitantes divertiam-se na praia de Carcavelos e no jardim do Arco do Cego. Desta maneira, até que ponto decretar uma quarentena obrigatória não seria a resposta mais eficaz à irresponsabilidade e audácia?

De seguida, urge analisar a importância do direito e da política na organização da sociedade. O direito é o conjunto de normas que regulam as relações entre os cidadãos, estabelecendo também as formas de punição para a violação das mesmas. Fundamenta um conjunto de princípios e normas que permitem evitar e resolver conflitos, tendo como objetivo a harmonia social. A política denomina a arte ou ciência da organização, direção e administração de nações ou Estados e os objetivos que uma comunidade se propõe alcançar, visando a harmonização da vida comunitária. Esta palavra teve origem na Grécia Antiga, onde as polis constituíam a forma de organização da população. A filosofia política reflete relativamente aos problemas que dizem respeito à Constituição, função e sentido do Estado e da sociedade, criando conceitos como a liberdade, o poder, a justiça e a obediência civil. Algumas temáticas que aborda são a privação da liberdade e a justiça social, patentes na obra do vencedor do Prémio Nobel da Literatura, de 1998, já que os indivíduos cegos estão presos num local com péssimas condições e as suas vulnerabilidades encontram-se a nu.

Será legitimo condicionar a liberdade dos indivíduos porque possuem uma doença contagiosa? Neste caso, o bem comum sobrepõe-se ao bem individual? Existem seres humanos livres e iguais com interesses coletivos? Ou vivemos num século em que o individualismo fala mais alto? Estas e outras questões surgem no nosso pensamento quando se trata de comparar as situações desta obra com as que vivemos neste momento. Podemos então alegar que o direito e a política não estão presentes? Que são apenas conceitos que regem a nossa vida quotidiana enquanto tudo se encontra estável? No fundo, as conclusões são simples: quando os cidadãos precisavam de ver os seus direitos assegurados, as instituições não zelaram pelo seu bem-estar. Naquilo que diz respeito ao nosso país, há exemplos positivos de respostas eficazes das instituições: o Conselho de Ministros decretou o “estado de alerta” em todo o país, reforçando os meios de proteção civil e as forças de segurança, ordenando o encerramento das escolas para a contenção do contágio e anunciando o pagamento de 66% do salário aos trabalhadores por conta de outrem que ficarem em casa a cuidar dos filhos menores de 12 anos.

Consequentemente, não podemos esquecer o estudo mais aprofundado dos conceitos de justiça, igualdade e equidade. O termo justiça diz respeito à igualdade de todos os cidadãos e trata-se do princípio básico de um acordo cujo objetivo é a manutenção da ordem social, preservando os direitos na sua forma legal e respetiva aplicação. Visa o respeito pelo direito do outro e a existência daquilo que é justo, ou seja, equitativo, adequado e legítimo. A igualdade é um dos princípios centrais dos regimes democráticos e é associada a um conjunto de direitos, sendo que a desigualdade gera conflitos sociais. A equidade consiste na adaptação da regra existente a uma situação concreta, analisando os critérios de justiça e igualdade. Podemos afirmar que torna “a regra” mais justa. Na sua ausência, as leis criadas acabariam por ser desfasadas da realidade e beneficiariam somente uma parcela da sociedade. E, por outro lado, prejudicariam fortemente outra parte da população, para os quais a simples lei não seria suficiente. Se a justiça preserva os direitos, a igualdade leva a que eles não sejam desiguais e a equidade adapta a regra a uma determinada situação. Concluímos assim que estes conceitos asseguram o bom funcionamento societal, o que não acontece na obra de Saramago: os casos específicos dos doentes que padeciam de cegueira branca não foram estudados e a regra não foi adaptada. Sobreviveram porque uma cidadã agiu de acordo com os seus princípios e assegurou aquilo que competia às instituições. Retomando a temática do coronavírus, por que motivo existem profissionais, como os motoristas dos transportes coletivos de passageiros ou os trabalhadores da aviação civil, que estão constantemente expostos ao contacto interpessoal e constatam que as entidades patronais, os governantes e a Direção-Geral da Saúde não tomam medidas para que sejam protegidos?

Em quinto lugar, é relevante não esquecer o questionamento do valor da força enquanto instrumento de estabilidade social. Força é qualquer ação ou influência capaz de modificar o estado de movimento ou de repouso de um corpo ou de uma determinada situação, exercendo uma aceleração e modificando a sua velocidade. No canso concreto da força como promotora da estabilidade social, a sua definição é tudo menos linear. Se a comunidade é essencial à vida humana e existem diferenças entre os indivíduos, é imperativo que haja uma força agregadora que una a comunidade e garanta a unidade de uma cidade ou de um país. Por exemplo, em Política, Aristóteles escreveu que essa força possuía duas dimensões: a da amizade (laço orgânico) – que considera ser “o maior dos bens para as cidades… porquanto pode ser o melhor meio para evitar revoltas”, pois, “perante os outros seres vivos, o Homem tem as suas peculiaridades: só ele sente o bem e o mal, o justo e o injusto” – e a da justiça (laço funcional), na medida em que julgava que esta “é própria da cidade… e consiste no discernimento do que é justo”. A amizade é a base da coesão social, da cooperação e da realização do bem comum, os laços afetivos mantêm unidos os membros da cidade e a justiça é o pilar do seu funcionamento harmonioso na esfera da ação. Em Ensaio Sobre a Cegueira, não existiu estabilidade social devido à ausência da dimensão da justiça, porém, no contexto hospitalar, onde a mulher que não padecia de cegueira branca auxiliou os pares, a amizade desempenhou um papel fundamental. O único paciente com quem tinha estabelecido uma relação prévia ao surgimento da epidemia era o seu marido, no entanto, lutou até que todos recuperassem a visão pela ordem que ficaram invisuais. Em terras lusitanas, alguns vizinhos organizam redes solidárias e provam que as suas portas estão abertas para quem tem problemas de saúde ou simplesmente medo de se deslocar até à rua em tempos de pandemia: um ombro amigo, uma conversa mantida à distância de segurança, uma ida ao supermercado ou à farmácia são alguns gestos solidários promovidos por condóminos.

Por fim, a reflexão sobre as consequências da gestão política da comunidade, os limites da obediência e da dignidade humana. A gestão política de uma comunidade quer dizer que ela é organizada e gerida de uma forma democrática, visto que determinados conceitos como a igualdade, a equidade e a justiça fazem parte de uma sociedade politicamente organizada. A gestão democrática é um modo de gerir uma instituição, de maneira a que esta possibilite a participação, transparência e democracia: todos os envolvidos numa comunidade devem participar na sua gestão; qualquer decisão e ação tomada ou implantada nessa mesma comunidade tem de ser do conhecimento de todos; existe um regime de governo em que o poder de tomar decisões politicas importantes pertence aos cidadãos, direta ou indiretamente, por meio de representantes eleitos; a administração e as decisões devem ser elaboradas e executadas sem qualquer hierarquia, o que não aconteceu no livro uma vez que na sua comunidade, os cidadãos não encontraram apoio e a interligação entre o eu, o outro e as instituições acabou por ser fortemente corrompida. No final, deu-se o abuso do poder por parte de um grupo que detinha os alimentos, ainda que uma grande parte dos pacientes tenha lutado por uma vida onde a cegueira branca deixasse de existir. No arquipélago da Madeira, foram criados variados grupos nas redes sociais, integrados por habitantes, para apelar ao isolamento voluntário, como o Covid-19 Madeira presente no Facebook. O Governo Regional decretou que todos os passageiros que aterrem nos aeroportos da Madeira e Porto Santo ficam em situação de quarentena obrigatória a partir das 00h de domingo. Para além disso, outra medida tomada passa pela isenção de pagamento das contas de água e luz para a população da região entre os dias 16 e 31 de março.

A dignidade humana é um valor moral e espiritual inerente à pessoa, ou seja, todos os seres humanos possuem esse direito que constitui um princípio máximo que Kant abordou em Fundamentação da Metafisica dos Costumes, de 1797. Nesta, defendeu que todas as pessoas deviam ser tratadas como “um fim em si mesmas” e não como um meio. Em suma, o Homem não deve ser utilizado como meio sem se considerar que é, simultaneamente, um fim em si. Ora, a dignidade segundo a moral kantiana está diretamente relacionada com o primeiro artigo da Declaração dos Direitos do Homem: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir uns com os outros num espírito de fraternidade.” Por outro lado, a obediência pode ser classificada como uma das virtudes do comportamento humano, através da qual se aceitam as ordens dadas por outro. O termo tem que ver com cumprir requisitos e aceitar proibições, subordinar a vontade a uma autoridade e realizar todas as instruções e pedidos. A figura da “autoridade” pode ser uma comunidade, uma ideia, uma doutrina ou uma ideologia, sendo que existem vários tipos de obediência: a militar (aceitam-se instruções no decurso de um código de vida e de conduta) e a solidária (refere-se à obediência de um sujeito integrado num grupo ou coletivo). Em Portugal, a cidade do Porto tem sido elogiada pelo cumprimento das recomendações estatais: no sábado à noite, locais tradicionalmente movimentados como a Rua Cândido dos Reis estiveram totalmente desertos.

“A pior cegueira é a mental, que faz que com que não reconheçamos o que temos à frente”, escreveu José Saramago. Esperemos que esta máxima oriente as nossas ações durante não só este período mais negro da História, mas também no futuro.

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