Em auto-isolamento há 48 horas por causa do coronavírus: “Obrigada por este dia bom”

O aviso e o ajuntamento em volta da banca do peixe fresco faz-me procurar o isolamento num corredor menos concorrido, o do carvão e barbecues.

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Lea Böhm/Unsplash

Sexta-feira somos mandados para casa. Deixar a secretária mais ou menos limpa, levar tudo o que aparentemente vou precisar para trabalhar à distância (ficar com a sensação de que me esqueci de algo...), despedir-me dos colegas e desejar-lhes, meio a sério, meio a brincar, “saudinha”, como se isto não fosse nada mas, cá dentro, o desconforto de imaginar que podemos não nos voltar a ver (sim, sou catastrofista e a incerteza mói), deixam-me com o coração demasiado perto da boca e a respirar profundamente até que ele volte ao seu lugar.

Sábado, primeiro dia de auto-isolamento e vou ao supermercado. Adopto a normalidade que andamos a recomendar aos leitores. Tiro a senha para o peixe e sou o 109, vai no 74. Pelos corredores, procuro o que me faz falta. As prateleiras estão cheias, mas há quem fotografe alguns espaços vazios (os das promoções) para, com certeza, pôr na Internet com comentários alarmistas. Há papel higiénico e enlatados. Cruzo-me, tentando cumprir a distância de segurança, com velhinhas de passo periclitante e homens que parecem ter saído das obras, no rosto têm máscaras daquelas para pintar paredes e luvas grossas nas mãos. Mas, a maioria, está calma e nem o aviso que se vai ouvindo sobre a garantia do abastecimento, o facto de haver desinfectante à entrada desa loja do Intermarché, e de “juntos venceremos” parece tocar quem ali está.

O aviso e o ajuntamento em volta da banca do peixe fresco faz-me procurar o isolamento num corredor menos concorrido, o do carvão e barbecues. Ali fico, à espera e a sentir-me irresponsável. Depois de ter pegado em várias embalagens, esfrego o olho direito. “Bolas, mas no que estava eu a pensar para vir para aqui?” Concentro-me na minha missão e telefono aos meus pais: “Estão bem? Precisam de alguma coisa? Não podem receber netos...” A voz da minha mãe sossega-me, com eles está sempre tudo bem e não precisam de nada. Óptimo.

Os números começam a correr, muitas desistências, e chega, finalmente, a minha vez. Faço o pedido de longe, alto, para não me aproximar demasiado dos outros. O que queria, já não há (as promoções são as primeiras a desaparecer), acabo por comprar uma cabeça de garoupa para fazer uma sopa de peixe: 22 euros, assinala a balança. “Paciência, há-de dar para muitas refeições”, conforto-me. “Esta deve ser rica, aquilo é só ossos”, diz a mulher para o marido, mesmo em cima de mim. Olho-a, irritada com o preço e com a sua proximidade, e pergunto-lhe: “Não sabe qual é a distância de segurança?” Ela encolhe-me os ombros e dá dois passos atrás, enquanto eu dou dois adiante. “Mamã, dá licença, quantos passos?”, imagino a brincadeira de crianças, para me acalmar.

Dirijo-me à caixa, a jovem, sem o sorriso habitual, fala-me entre os dentes, evitando abrir a boca. Sinto a tensão, faço um sorriso amarelo como que a pedir-lhe desculpa por ali estar - “sim, foi uma estupidez...” - e saio o mais depressa possível enquanto ela fica a desinfectar a minha passagem por ali. 

Domingo, o primeiro dia sem pôr um pé na rua. Decidimos fazer uma aula de ioga. Vestimos a roupa do ginásio, encaixamo-nos como peças de um puzzle em torno da mesa da sala, ouvimos música “inspiracional” e a nossa filha é a personal trainer que nos endireita as costas e corrige os movimentos que fazemos mal. Decidimos que vamos tentar incluir o exercício físico na nossa rotina, uns dias ioga, outros dias chi kung ou talvez tai chi, depende da minha evolução (sou pouco coordenada...) e da vontade dos nossos treinadores, perdão, filhos.

Tenho trabalho para fazer e não sou a única. A mesa de jantar transforma-se num escritório com portáteis e telemóveis a serem teclados e um silêncio de quem está concentrado nas suas funções. Interrompemos para comer a bendita sopa de peixe. Conversamos, inevitavelmente sobre a razão que nos faz ficar em casa, as decisões do Governo; a situação em Itália; o elogio, na noite anterior, ao SNS feito pelos portugueses, a partir das suas janelas; o desalento que algumas pessoas que conhecemos começam a sentir, as mensagens alarmistas. Decidimos que, diariamente, vamos ligar a um amigo para saber como está. As redes sociais não bastam.

A tarde passa depressa. Depois do jantar, rimos com Ricardo Araújo Pereira e ficamos impressionados com a rapidez de resposta de Francisco Rodrigues dos Santos, o “Chicão”. Decidimos desligar a televisão e limpar o pó à caixa do Trivial Pursuit. A primeira pergunta que me calha para queijinho é se há uma loja Chanel em Lisboa ou no Porto. “Nesse tempo não havia no Porto. Mas agora há”, respondo. As perguntas só chegam a 2006 e os mais novos desconhecem quem é Daniela Mercury, Susana Vieira ou Marisa Cruz. “Como é que vocês sabem?”, exclamam, espantadíssimos. Rimos à gargalhada. Antes de nos deitarmos, ouvimos do quarto ao lado: “Obrigada por este dia bom.”

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