O foodie que não é “cagão” gosta de bitoques e come tarântulas

A grande vantagem de Ricardo Dias Felner é levar tudo o que diz respeito à comida muito a sério e não se levar a si próprio demasiado a sério. E isso faz com que seja um prazer ler O Homem Que Comia Tudo.

Foto
Uma das experiências que o autor faz é cozinhar insectos Daniel Rocha

“Ser maluquinho da comida – ou foodie, ou gourmet ou gourmand – é uma doença crónica que se agrava quanto mais se come e mais se sabe sobre comida.” E Ricardo Dias Felner tem sentido que a coisa se agrava seriamente. Chegou a pensar que, quando passasse a dedicar-se ao assunto de forma mais profissional, poderia perder o interesse, “como esses actores porno enfastiados com o métier”. Mas não aconteceu. Pelo contrário.

O Homem Que Comia Tudo é o nome do blogue do antigo jornalista do PÚBLICO e ex-director da revista Time Out – e é também o título do livro que acaba de lançar e no qual reúne os textos que tem publicado ao longo dos últimos anos (também no Expresso, Sábado e revista Grandes Escolhas).

Há um pouco de tudo. Da investigação mais aprofundada ao culto do frango assado em Portugal à metafísica (mais física que meta) do bitoque (e não se imagina o tanto que há para saber), passando pelas experiências mais radicais, com insectos, por exemplo. Aí, no texto “Sai uma tarântula mal passada”, ficamos a saber que “o primeiro problema quando se quer fazer uma refeição de insectos não é comê-los, é encontrá-los” (uma opção é Alverca, isso podemos revelar). E somos informados que grilos vão bem com pesto.

O que atravessa todo o livro, seja qual for o registo dos textos, é um olhar muito particular que Ricardo tem sobre a comida. Primeiro, com uma enorme curiosidade que o leva a lançar-se em pesquisas muitas vezes exaustivas para chegar à verdade definitiva sobre um determinado assunto. E depois com uma escrita elegante, inspirada e atravessada por uma ironia que torna tudo muito mais digerível – mesmo as tarântulas.

Foto
Ricardo Dias Felner dr

Ricardo Dias Felner tem a perfeita noção de como certas práticas dos chamados foodies se aproximam bastante do ridículo. É, por isso, uma delícia ler a crónica “Foodies, esses chatos”, com episódios como o da ida do autor ao talho do El Corte Inglès. “Estava eufórico por ter o talhante só para mim e queria saber quanto pesava o bicho, onde pastara, o signo, se era novo ou velho. – Desculpe, esta aba de vaca barrosã será de um animal com que idade?”, pergunta o jovem foodie, entusiasmado.

Não é vaca, é boi, responde-lhe o talhante. A carne de vaca não é boa para comer. Quer saber a idade do boi, é isso?

– Sim, é isso. Prefiro os mais velhos.

– Oiça, isso são tretas que se lêem na Internet. Esta carne é de novilho e é excelente. Mas para lhe explicar porquê levaria muito tempo. E tempo é coisa que não tenho.

Pimba. Tautau ao foodie. Bofetada ao menino a brincar às comidas. Vai buscar. Às vezes é mesmo isto que merecemos.”

Mau mesmo é quando “o foodie sincroniza com o cagão”. Aí temos “uma tragédia social”, assegura Felner no mesmo texto, para se lançar na descrição (imperdível) do que é um foodie/cagão em acção.

Mas a consciência de ser “um menino a brincar às comidas” não lhe retira a generosidade com que se interessa pelo que é realmente bom, quer sejam os enchidos Feito no Zambujal (no texto sobre o Guadiana, “Os segredos do rio grande do Sul”), ou um dia com o mítico chef espanhol Ferrán Adrià no já desaparecido elBulli.

E, sobretudo, não lhe retira a determinação e a persistência. Para, por exemplo, ir provar todos os gelados de pistácio de Lisboa num esforço para perceber as diferenças entre eles, reagindo assim a uma provocação da “família Conchanata” da famosa geladaria da Avenida da Igreja – isto noutra das crónicas de humor implacável e certeiro. 

Há ainda no livro momentos de verdadeiro food porn literário, como esta descrição do ovo de um bitoque: “O ovo deve ser um bicho feio e encarquilhado. Ovos estrelados lisinhos, branquinhos, com a gema reluzente, toda empinada, só servem para mupi da McDonald’s. A clara perfeita tem que ser frita até estar bem caramelizada e de forma a criar bolhas grandes e douradas; a gema do ovo deve sucumbir à ponta da faca e escorrer langorosa pelo bife até chegar ao molho. No fim, é essencial que se derramem duas ou três colheres de molho por cima do ovo, deixando que o alho se aloje nas protuberâncias da clara.” É assim mesmo. “Vai buscar”, como diria o autor.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários