Cafés vazios, lojas fechadas, compra de álcool etílico limitada: a manhã seguinte ao “estado de alerta”

No comboio, sentada como não costuma vir, uma lojista ouviu três pessoas a receberem chamadas do emprego para não irem trabalhar. No Centro Comercial da Mouraria há lojas chinesas que fecharam. Uma pensão passou a manhã a gerir cancelamentos. Há pessoas na rua a usar máscaras.

Praça do Comércio
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Daniel Rocha
Torre de Belém
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Rui Gaudêncio

Cafés com mais empregados do que clientes, racionamento de venda de álcool etílico, estações de metro e comboio vazias, lojas onde não entra ninguém, supermercados com prateleiras sem papel higiénico ou massas. Na manhã que se seguiu à declaração do “estado de alerta” por causa da pandemia do novo coronavírus, os efeitos sentiram-se logo em Lisboa.

O contraste entre um dia normal e esta sexta-feira notou-se logo nas ruas quase sem trânsito na zona do Marquês de Pombal, pelas 10h da manhã. Na Avenida Duque de Loulé, onde diariamente sobem e descem milhares de pessoas, só se viam turistas ou pessoas a dirigirem-se ao supermercado. Maria João Milagres, 51 anos, atrás do balcão de uma loja de roupa, contava que conseguiu lugar no comboio das 8h19 do Pragal para Lisboa, algo inédito porque àquela hora “não cabe uma mosca”. No caminho ouviu pelo menos três pessoas a receber chamadas telefónicas do emprego para “voltarem para trás” ou para irem ao local de trabalho buscar um computador. Uma coisa que tem reparado nos cafés que costuma frequentar: as pessoas até vão, mas não se demoram.

Não é exactamente isso o que se passa no café Balcão do Marquês, que costuma estar sempre muito cheio. Fernando Santos, um dos donos, estima uma quebra de 60% desde quarta-feira; já tiraram perto de 30% das mesas para libertar espaço e evitar a proximidade entre clientes. À entrada têm desinfectante para as mãos, cumprem as normas de higiene, mas, mesmo, assim nesta sexta-feira de manhã estão mais empregados do que clientes. “É alarmante. Nunca tinha acontecido uma coisa assim.”

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Com 30 colaboradores a contrato, Fernando Santos teme “uma calamidade” no negócio — “não podemos fazer teletrabalho!" A previsão em relação à Páscoa, uma época alta de turismo, é que já está “perdida”. Cerca de 30% dos seus clientes são turistas. Aliás, reforça: “O ano turístico está perdido. O dinheiro que as pessoas tinham para as férias vai ser preciso usar agora.” Defende que se deveria fechar tudo durante três ou quatro semanas de quarentena, de forma a controlar os custos. “Assim é um marasmo, não conseguimos fazer planos.” 

Uma manhã com cancelamentos de quartos

No supermercado, um pouco acima, foi reposto o stock de quase todos os produtos mas escasseiam coisas como papel higiénico, detergente da louça, massas, arroz. As filas para pagar são longas e muito mais do que o habitual àquela hora, diz a operadora de caixa. “Não é normal esta afluência.” Na noite anterior, noutra zona, Saldanha, as prateleiras dos legumes frescos estavam vazias e não havia rolos de papel higiénico. 

Francesa a viver em Portugal há dois anos, grávida do terceiro filho, Maria, 35 anos, está a encher o carrinho de massas e produtos que pode usar mesmo que tudo volte ao normal rapidamente. A ideia é prevenir-se para o caso da situação se tornar dramática. Costuma fazer compras online numa cadeia de supermercados, que normalmente lhe são entregues no dia seguinte; agora o tempo de espera são quatro ou cinco dias, e não conseguiu comprar produtos como pão ou leite. “Costumamos comprar produtos biológicos, está tudo esgotado”, continua.

Numa pensão na mesma rua, Márcio Fernandes, recepcionista, passou a manhã a receber emails com cancelamento de reservas. “Até à Páscoa devemos ter uma quebra de 80 ou 85%”, disse. A taxa de ocupação estava nos 90%, o que para esta altura é um cenário positivo. 

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Na rua passa uma mulher a falar ao telemóvel com luvas. Uma ou duas pessoas têm máscara, mas nesta zona da cidade não se vêem muitas.

Num quiosque, junto à boca do metro, Adam Mohammad estima uma descida de 75% no negócio, sobretudo desde há dois dias. “Foi tudo trabalhar para casa”, comenta. A única coisa que tem vendido um pouco mais são bilhetes para autocarros turísticos. Qual é a sua estratégia? “Continuar a trabalhar”, responde.

No metro as carruagens seguem com bastantes lugares vazios e espaço em pé. O café da estação de comboios do Rossio, normalmente cheio, tem com um par de mesas ocupadas. Lá dentro, antes da entrada para as plataformas, quase não se vêem pessoas, algo raro porque por esta hora, 11h30, costuma haver movimento. No posto de turismo, a funcionária, de luvas postas, diz que não tem atendido espanhóis, os turistas mais presentes. Nunca teve tão pouca gente nesta altura do ano. Comercializam bilhetes para museus e eventos culturais e com o fecho de quase toda a actividade cultural em Lisboa as vendas terão descido de 500 para 100 euros por dia, estima.

Em plena praça do Rossio, até o MacDonald’s viu a clientela descer. “A esta hora costuma estar à pinha, agora devem estar umas 10 ou 15 pessoas aqui”, diz Bruna Dinis, relações públicas.

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Lojas chinesas fecham

Seguindo pelas ruas que dão ao Martim Moniz a circulação faz-se com bastante espaço. No supermercado asiático há uma a mezzanine ocupada por quiosques de restauração, o “mercado asiático”, mas três deles fecharam; também a casa de chá, à entrada, não está a servir. Às 12h30 não está ninguém nas mesas comuns.

No supermercado, que fica na cave e tem vários produtos orientais, a clientela entra e sai, mas são sobretudo turistas. Nesta zona da cidade vêem-se várias pessoas com máscaras, sobretudo funcionários, que também usam luvas. Perto da operadora de caixa estão garrafas de álcool etílico e a inscrição: “máximo de duas por pessoa”. Joana Wung, da gestão, explica que o racionamento serve para que mais “pessoas tenham” acesso a este produto, havia “quem quisesse levá-las todas”, mas “temos que nos proteger e os outros também”. No supermercado não tem sentido descido nas vendas: “É um supermercado”, diz. Meia hora depois, as garrafas de álcool etílico tinham sido todas vendidas.

Ao lado, o centro de saúde parece estar fechado, mas é uma impressão por causa da ausência de utentes. Normalmente, é um entra e sai de dezenas de pessoas àquela hora. A circulação estará limitada a uma pessoa, feita pela funcionária à entrada, de máscara. Não há ninguém. 

O próprio Centro Comercial da Mouraria está às moscas. Há várias lojas de produtos chineses que fecharam. Com uma única cliente, Kalid Mohammad, que trabalha numa loja de telemóveis há dois anos, diz que nunca viu este espaço assim tão vazio, nem nos meses mais fracos de Janeiro e Fevereiro.

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Uns metros à frente, na Rua do Bemformoso, Choonilal Mulji, 78 anos, de origem indiana, a viver em Portugal há 39 anos, está a testemunhar um fenómeno inédito. Vendedor de produtos para comerciantes, como bonecas ou rolos para caixa registadora, recebeu o primeiro cliente às 11h30. “Nunca tinha acontecido.” Estima em cerca de 50% a queda nas vendas que vem sentindo desde há duas semanas. “Mas a quebra maior é hoje”, afirma.

Embora com menos gente, as ruas à volta continuam movimentadas. À medida que se avança para o rio há cada vez mais pessoas, sobretudo na zona do Cais do Sodré e da Ribeira. Há mesmo quem aproveite para se deitar ao Sol. Quase que parece um dia normal. 

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