A “fantasia” de Trump e Bolsonaro

Não confundamos o léxico, nem misturemos medidas pontuais com soluções estruturais. A saída desta crise está numa palavra que a extrema-direita detesta: solidariedade.

A realidade caiu-nos em cima. Não há mais dúvidas sobre a gravidade do desafio com que estamos confrontados. Aos profissionais de saúde, é merecido o reconhecimento do seu esforço e a certeza de como serão determinantes para vencermos esta batalha. A cada um e cada uma de nós, a consciência de “estarmos todos no mesmo barco” e como as escolhas individuais farão toda a diferença para alcançarmos uma vitória coletiva.

Se as indicações são simples, não há desculpas para não as cumprir. É só manter alguma distância social, lavar as mãos frequentemente, tossir ou espirrar para o antebraço e evitar tocar a cara. Por favor, leia várias vezes este parágrafo para garantir que não se esquece, estará a fazer muito por todos nós. Este é um daqueles casos em que a desinformação mata.

A forma leviana como alguns desvalorizaram o impacto do vírus covid-19 mostra bem como nem todos têm estado à altura das responsabilidades que enfrentamos. E se isso é grave em qualquer pessoa, é ainda mais grave quando falamos de dirigentes que têm em mãos as políticas públicas que poderão fazer a diferença na vida das pessoas.

Há frases que ficarão para a história como disparates monumentais. Uma delas, repetida à exaustão, é a que compara a covid-19 a uma gripe normal. Não vou repetir argumentos para desmascarar esta ideia, felizmente a imprensa tem feito bem o seu trabalho para mostrar o absurdo. Mas, não posso deixar de apontar o dedo a um dos responsáveis mundiais que mais a repetiu, Donald Trump.

O presidente dos EUA começou por desvalorizar os alertas mundiais que apresentou como um “novo embuste”, ironizando: “A minha próxima obra chama-se Nada pode parar o que aí vem”. Depois do achincalhamento, veio o achismo, considerando que os números apresentados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) eram falsos com base no seu “palpite”. E continuou anunciando que “Isso acabará, isso acabará. Veja a temporada de gripe”. Entretanto, foi passando uma mensagem de falsa segurança às pessoas, com custos inequívocos que se contabilizarão no futuro próximo.

Outro dos negacionistas foi Jair Bolsonaro, também com uma frase que ficará para a história: “Obviamente, temos no momento uma crise, uma pequena crise, né. Ou, no meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo”. A suprema ironia é que um dos seus principais assessores já confirmou ter contraído a covid-19 e o próprio Bolsonaro desespera pelos resultados dos testes para ver se passará a fazer parte das estatísticas dos infetados.

Para políticos como Trump ou Bolsonaro o vírus é rapidamente politizado e inserido na sua narrativa sobre o mundo. Negam ou criam suspeitas sobre a ciência, inimiga fidagal das suas narrativas, e transformam o debate no “nós contra eles”. O recente discurso de Trump é disso um bom exemplo, chamando a covid-19 como um “vírus estrangeiro” que está a invadir a América, o “vírus chinês” que ameaça. Como noutros momentos, a xenofobia está presente em doses abundantes, procurando a simplicidade da ideia que “estrangeiro=mau”.

Se acham que estou a exagerar, dou mais um exemplo, o de Matteo Salvini. O líder da extrema-direita italiana tem associado o surto do vírus na Itália à chegada de migrantes, procurando, à exaustão, colar a palavra covid-19 a “africano”, “negro” ou “muçulmano”. Não pense que isto se baseia em qualquer facto científico, é mesmo o mais puro racismo.

Não há qualquer vergonha ou embaraço em tentar aproveitar uma pandemia para benefício político, é assim a extrema-direita, sonhando implementar o seu sonho de isolamento e encerramento de fronteiras. É nestes momentos que se desmascaram os oportunistas e a extrema-direita aí está.

Não confundamos o léxico, nem misturemos medidas pontuais com soluções estruturais. A saída desta crise está numa palavra que a extrema-direita detesta: solidariedade. Entre cada um de nós respeitando as indicações das direções de saúde, entre os povos na partilha de recursos e conhecimento, na investigação conjunta para alcançar uma vacina e nos serviços públicos que são o expoente máximo dessa solidariedade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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