Desconfiança institucional e o coronavírus: um auxílio a uma possível pandemia

Com a falta de tempo do típico cidadão e a imensidão de dados que recebemos diariamente, torna-se impraticável tentarmos saber tudo. Na minha experiência, a melhor resposta à dúvida é evitar ser ateu e tentar ser agnóstico. Ou seja, em vez de dizer “Não acredito”, dizer “Não sei”. E, se possível, procurar a verdade.

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Reuters/FLAVIO LO SCALZO

Nos últimos anos, a extensão das redes sociais e o acesso a Internet levaram a uma revolução de conhecimento, permitindo uma acessibilidade generalizada a informação nunca antes vista na história. A popularização do conhecimento até poderia ser um dos maiores eventos do último século, não fosse a forma como esse conhecimento é, hoje em dia, manipulado mundialmente.

Nos Estados Unidos da América, o VIH/sida foi descoberto no início dos anos 80, pouco depois dos canais públicos de televisão serem implementados, nos anos 70. No entanto, a disseminação pública de informações erradas sobre a doença, nomeadamente de que era uma doença que apenas afectava as comunidades homossexuais, levou a uma maior disseminação de infecções. O continuo silêncio do presidente Reagan até 1985, cinco anos mais tarde — um presidente altamente católico — é hoje criticado. O acesso público a informação não melhorou a situação, com títulos de notícias como “A Praga Gay”, levando grande parte da população a crer que nunca poderiam apanhar tal doença. Houve inclusivamente homens homossexuais atacados, na rua, por pessoas com medo de serem contagiadas. Reconhece algo semelhante?

O novo coronavírus não pode ser em nenhuma forma comparado com o VIH (nem a resposta das autoridades), mas a nossa resposta como população ao vírus pode. Era de esperar que tivéssemos aprendido, mas parece que não. Os ataques físicos racistas a asiáticos estão a alastrar, tal como a desinformação, exponencialmente partilhada pelas redes sociais.

A taxa de mortalidade inicial da covid-19 era de 2%; agora quase duplicou, para 3,4%. Na gripe sazonal, a taxa de mortalidade é de 0,1%. Se pensa que é um número baixo, lembre-se de que somos 7 mil milhões de pessoas e a gripe já mata mais de 200 mil anualmente. A covid-19 pode matar 34 vezes mais. No entanto, estes números não estão confirmados, sendo altamente especulativos de momento.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) identificou que 80% dos pacientes apresentam doença leve ou assintomática (principalmente em crianças), 14% apresentam sintomas graves e 5% sintomas críticos, o que leva a crer (apesar de ainda ser cedo para confirmações) que a taxa de mortalidade irá diminuir nos próximos dias. No entanto, existem indícios de que não baixará mais do que entre 1 a 2%; e há um maior número de casos críticos e graves do que na gripe sazonal, com necessidade de internamento.

Um estudo intitulado Clinical Characteristics of Coronavírus Disease 2019 in China mostrou um número mais elevado de pacientes em internamento — e um maior tempo do mesmo. Em casos extremos, pode levar à exaustão as capacidades hospitalares. Até ao momento, o vírus encontra-se maioritariamente em países desenvolvidos e com fácil acesso a cuidados de saúde. Mas caso haja propagação para zonas mais empobrecidas e com difícil acesso a hospitais, a taxa de mortalidade pode aumentar novamente.

Não podemos cometer o mesmo erro do que em outras epidemias. O Zika, por exemplo, foi minimizado até se descobrir as malformações causadas em fetos. Não podemos subestimar este tipo de doenças. Não é difícil prever que notícias falsas e preconceituosas se transmitam em conjunto com o vírus. No entanto, continuamos a ignorar o quanto a nossa forma de vida mudou devido à Internet e o perigo do seu impacto em caso de emergência medica.

E nisto temos dois lados: a histeria e a indiferença. No Reino Unido, onde vivo, já começou o açambarcamento desmesurado de comida, papel higiénico, medicamentos e chá (incrivelmente britânico). Esperemos que não se espalhe, como o vírus fez, para Portugal. Máscaras são roubadas das unidades de saúde, pondo em risco precisamente quem precisa mais delas.

A verdade é que não há necessidade de haver qualquer pânico. Não faltam alimentos ou medicamentos e terás acesso a tudo o que precisas se ficares doente. Não acumules nada, pois as coisas serão mais necessárias para quem está de quarentena, doente ou para os profissionais de saúde. A efectividade do uso de máscaras no dia-a-dia também é especulativa, mas essencial para os profissionais de saúde a contactar directamente com diversas doenças infecciosas (não só a covid-19).

Do outro lado da histeria temos a indiferença. A partilha de gráficos e informações que parecem legítimos e que defendem que isto “é só uma gripe”. Não, não é. É pior. O único ponto em que se assemelha à gripe é a forma de propagação e o tipo de sintomas leves que provocam. Ainda estamos a aprender muito sobre o vírus, mas comparar com uma gripe é ineficiente, perigoso e pode levar a uma maior e mais rápida propagação do vírus. O encerramento de locais públicos onde alguém contraiu o vírus é uma tentativa de garantia de identificação de todas as pessoas com quem o infectado esteve em contacto. É prevenção, não é histeria.

Acreditar que é apenas uma gripe também poderá diminuir a adesão às vacinas, quando estiverem disponíveis. A minha geração, a geração millennial, já apresenta maior risco de não-vacinação em outras doenças, sendo que 20% dos adultos desta geração, nos EUA, pensam que as vacinas causam autismo. Se acreditarem que é apenas uma gripe, essa tendência continuará também para o novo coronavírus. O sarampo, por exemplo, foi eliminado nos EUA em 2000, devido a campanhas de vacinação. Mas, em 2019, houve 1282 casos.

Porquê esta polarização de respostas?

As autoridades têm feito um trabalho fabuloso, com planos e testes definidos e implementados rapidamente, e uma vacina em desenvolvimento (que deverá estar pronta daqui a um ano). No entanto, mesmo quando as autoridades finalmente tiveram uma reacção de prevenção e de apoio da população, a confiança nas mesmas nunca terá sido tão baixa, o que parece ser transversal para qualquer tipo de reacção e resposta na população. Então, porquê esta polarização de respostas?

Algumas organizações, incluindo a União Europeia na sua página oficial, argumentam que a desinformação é a razão para esta desconfiança global. Mas, se analisarmos o contexto histórico, podemos também argumentar que a desconfiança é a razão da desinformação. Parece-me contraditório dizer que, com uma população cada vez mais educada, estejamos mais desinformados, mesmo que haja realmente falsas notícias.

A resposta a nível mundial de controlo e gestão da covid-19 pode ser adaptada e implementada em outras áreas de resposta, incluindo as alterações climáticas. Um assunto extremamente político, mas com base científica. Ironicamente, o novo coronavírus parece ter ajudado neste ponto, com uma diminuição acentuada da poluição na China devido ao fecho de fábricas. Também vemos online uma diferença na visão popular e na reportada pelas autoridades, o que faz nascer um sentimento de déjà vu associado a todos estes casos que inundam as nossas casas diariamente. Vários rumores foram partilhados nas redes sociais, profissionais de saúde sobrecarregados e exaustos e com poucos recursos em Itália. Provavelmente, a realidade é um misto dos dois: as autoridades tentam cobrir os recursos necessários, os profissionais de saúde em zonas como a Itália têm que gerir demasiados pacientes e com poucos recursos.

A União Europeia está a desenvolver políticas para o controlo da desinformação, focando-se no sintoma em vez da doença. As razões usadas para a proliferação de desinformação são a luta contra bots e contas falsas, comunidades de teorias da conspiração, tentativas de manipulação dos media e eleições democráticas. Uma das políticas que a UE revela no site, “interrompendo a receita de publicidade de determinadas contas e sites que espalham desinformação”, poderá inclusive ser vista como o abocanhar de notícias, mesmo que falsas, sendo contraproducente. Esperemos que, de facto, a única causa desta desconfiança sejam os trolls das redes sociais. Mas, novamente, existe dúvida.

Em vez de dizeres “Não acredito”, diz “Não sei”

A regulamentação das redes sociais pode ajudar até certo ponto, mas facilmente será vista como censura e filtração de informação. A solução passará, antes, por uma política mais transparente e baseada em factos e ciência, com a eliminação da corrupção e interesses pessoais. Utópico e irrealista, sim, mas o retorno da confiança institucional precisa ser merecida. Tudo indica que a desigualdade económica irá continuar, com previsões de perda de triliões no PIB devido ao vírus, e linhas de créditos a serem abertas para negócios nos próximos meses. Uma possível nova crise económica só acentuará estes problemas.

Com isto, não defendo o apoio das teorias da conspiração ou o anarquismo. Apenas demonstro que temos casos confirmados de falhas institucionais que nos chegam diariamente — e culpar o utilizador não é o modo mais eficaz de consertar este problema. 

Não serei eu, de certeza, a dar resposta a estes problemas, mas faço antes um apelo à compreensão destas razões complexas e interligadas para a desinformação espalhada a nível mundial. Com a falta de tempo do típico cidadão e a imensidão de dados que recebemos diariamente, torna-se impraticável tentarmos saber tudo. Na minha experiência a trabalhar com dados diariamente, a melhor resposta à dúvida é evitar ser ateu e tentar ser agnóstico. Ou seja, em vez de dizer “Não acredito”, dizer “Não sei”. E, se possível, procurar a verdade.

Este estado cultural e social é perfeito para a propagação de uma potencial pandemia. A informação errada e a minimização do problema em alturas de epidemia podem levar a um desastre mundial. Portugal é um país envelhecido, o que pode significar uma sobrecarga dos nossos hospitais se não tomarmos os devidos cuidados. Temos que confiar em alguém; e, neste caso, serão as autoridades de saúde e cientistas a tentar combater a doença.

É irresponsável continuar a espalhar a ideia de que é apenas uma gripe. É uma emergência de saúde global, de acordo com a OMS. Há indicadores que nos deixam com esperança e outros que nos puxam para a caracterização de pandemia mundial. Não há qualquer necessidade de histeria, mas não minimizem o impacto e a importância desta doença. Sigam as instruções dadas e evitem viajar. A quarentena é para ser cumprida com o isolamento total dentro de casa. E levada a sério.

No momento em que este artigo foi escrito, 119,378 pessoas foram infectadas, com cerca de 4300 mortos (mais 8012 infectados e 500 mortos do que quando o comecei a escrever). Este número aumentará. 

Se sentires febre, tosse e dificuldades respiratórias, liga para a Linha de Saúde 24 (808 24 24 24) e segue as recomendações. Não vás ao teu médico ou hospital.

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