Vamos à morte, que a vida é certa

O decoro parlamentar, a decência comum apontam, claramente, para um debate nacional que conduza a um esclarecimento do que pretende a nossa comunidade.

Há tempos ouvi a Vasco Pinto de Magalhães esta frase, que é a inversão do bem conhecido dito popular. Vem-me com frequência à mente, nos últimos tempos, esta asserção, que os projectos de lei acerca da eutanásia e da ajuda ao suicídio têm tornado particularmente actual.

Projectos de lei praticamente sobreponíveis (alguns até recorrem ao mesmo fraseado) que têm como cerne a despenalização da morte a pedido, posta em prática por terceiro (nestes projectos, um médico); projectos pobremente fundamentados, com textos introdutórios que, em vez de justificarem o corpo da lei, exemplificam confusão e contradição. Na realidade, a relevância total e definitiva dada à autonomia é filosoficamente inaceitável e negada pela realidade: a autonomia é um importante princípio ético, mas ela é sempre conjuntural, limitada e relacional. Recorrem os textos igualmente ao conceito de sofrimento, sem o tentarem caracterizar e tornar operacional; sendo de natureza subjectiva, não mensurável, a presença de sofrimento dependerá apenas das declarações de quem o possa viver. De resto, não se compreende, nesta linha de pensamento, a proposta de restrições ou limitações à elegibilidade para acesso à eutanásia – se a autonomia é o factor crucial, então qualquer adulto não padecendo de doença psíquica deveria poder candidatar-se à eutanásia, mesmo estando de perfeita saúde (circunstância em que o exercício da autonomia é bem mais garantido do que se houver doença grave ou terminal).

Acresce que a iniciativa de legislar nesta matéria é extemporânea e inútil: não há qualquer movimento de fundo na sociedade portuguesa a exigir que se legisle nesta matéria (é certo que existe uma petição nesse sentido, mas há outra, até com mais assinaturas, em sentido oposto) e não há conhecimento de conflitos suscitados por pedidos de eutanásia não atendidos pelos profissionais de saúde. Pelo contrário, oncologistas, médicos de cuidados paliativos, outros profissionais que lidam diariamente com a morte, afirmam que é extremamente raro o pedido de eutanásia e que por via de regra a atenção e a prestação de cuidados adequados e personalizados fazem desaparecer essas raras solicitações.

Outro aspecto importante para avaliar a bondade de uma inovação legislativa é, obviamente, a natureza e amplidão das consequências que poderá ter. Ora, nesta área temos certezas, resultantes do que se passou na última década na Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo. Assim, é certo que existe a praxis de um alargamento de indicações, condições restritivas, de uma banalização do excepcional. É fenómeno bem conhecido o da rampa deslizante, em consequência do qual pessoas sãs mas alegando cansaço de viver têm acesso à eutanásia, o mesmo acontecendo com crianças doentes, a pedido dos seus progenitores. De resto, se fosse aprovado qualquer dos projectos agora apresentados, nem sequer seria necessário esperar pela instalação da rampa deslizante para podermos assistir à eutanásia de cegos ou amputados, já que os projectos incluem estas condições (perda irreparável e definitiva de órgão) como admitindo o recurso à prática letal.

A eventual aprovação de legislação deste tipo implicaria uma profunda alteração de normas e vivências da sociedade portuguesa. Se a vida humana sob certas condições deixar de ser inviolável, então abrir-se-á a porta à demanda extremista, latente em certos círculos, da re-introdução da pena de morte para delitos particularmente graves; e será necessário rever a atitude da sociedade e particularmente dos meios da saúde quanto ao suicídio. Se for legítima a ajuda ao acto suicidário, como poderemos justificar a prevenção do suicídio, os esforços para impedir a concretização do acto em si e o tratamento médico de tentativas de suicídio?

Não há dúvidas de que este tema é, como se tornou usual dizer, fracturante. Isto significa que as opiniões se dividem, com os profissionais de saúde, que devem ser os peritos nesta matéria, a rejeitarem maioritariamente a eutanásia. Sendo assim, e não existindo qualquer pressão da opinião pública para urgência legislativa, porque existe oposição à realização de um referendo esclarecedor? Existirá uma necessidade político-partidária de arrumar o assunto antes de uma eventual alteração das condições hoje existentes na nossa Assembleia, insinuando-se assim no espírito do cidadão comum a noção de que há um parlamento mau (o que reprovou há um ano e meio a eutanásia) e um parlamento bom (o que parece querer aprová-la). O decoro parlamentar, a decência comum apontam, claramente, para um debate nacional que conduza a um esclarecimento do que pretende a nossa comunidade.

Afinal, o povo tem razão: vamos à vida, que a morte é certa.

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