Eutanásia: perigosa na ação e incompreensível na pressa

Em teoria, muitos encontrarão motivos que justifiquem a eutanásia. Na prática, acho-a perigosa na ação, injustificada na prioridade e incompreensível na pressa.

Medicina, do latim, ars medicina, significa a arte da cura. Tecnicamente, segundo a Organização Mundial da Saúde, a Medicina refere-se a “práticas, abordagens e conhecimentos, aplicados individualmente ou combinados, a indivíduos ou a coletividades, de maneira a tratar, diagnosticar e prevenir doenças, ou visando manter o bem-estar”. A Medicina advoga a vida, a sua promoção, a sua manutenção, enquanto esta se justifica, e a qualidade da mesma. Fora estes objetivos, a Medicina é fútil e eticamente insustentável.

Ora, se os médicos nos ajudam a viver, porque não haverão também de nos ajudar a morrer, quando queremos e de forma digna? Em teoria, o problema parece bem mais simples do que aquilo que se afirma na prática. Ora vejamos:

Contra a Eutanásia, encontrarão as religiões, que defendem genericamente a Vida, boas razões morais para que seja condenada. E encontrarão os cidadãos muitas razões culturais, por verem tradicionalmente na Vida um Bem superior, a preservar, e que não está nos seus hábitos ver sacrificar, mesmo à pretensa vontade de cada um, apoiada em leis que deveriam interpretar e defender as culturas e que só por clamorosa violação as poderão esmagar. Mas também por recearem que a eles se aplique futuramente, numa lamentável escalada de deriva, como se vem assistindo noutros países.

Contra a Eutanásia poderão falar os profissionais de Saúde, preparados desde cedo para fazer viver e não para deixar ou fazer morrer, e que terão de ser os executores finais de um qualquer processo de eutanásia, sobre uma qualquer pessoa, se a aceitarem.

A favor da eutanásia estão movimentos que constantemente fraturam a sociedade, numa escalada desafiante que serve hoje melhor a ousadia populista do que os interesses do Povo, em nome do qual é defendida. Numa escalada que, pressionada numa urgência que poucos entendem, mas que certamente todos desaconselham, tal a seriedade do tema. Seriedade a impor ponderada reflexão e o largo escrutínio de uma clara maioria popular. Só por insondáveis razões não se ouve, sobre a eutanásia, o Povo Português, enquanto a defendem com base no exercício da autonomia individual.

Mas servirá, a eutanásia, os doentes a quem se aplica? No topo de uma carreira médica longa, de 44 anos, e numa especialidade entre as mais exigentes, tenho grandes dúvidas... Se o papel dos médicos e pessoal de saúde é servir os doentes, importa para a eutanásia que coexistam a vontade informada e competente dos doentes e uma situação terminal com uma qualidade de vida considerada abaixo da mínima aceitável. Na prática, é discutível que a informação e a competência de um doente numa situação destas sejam certas, e perdurem no tempo, sendo que a decisão é de morte e, naturalmente, sem retorno. É igualmente falível a apreciação destes estados, mesmo por técnicos competentes...

Portugal tem, por enquanto, bons indicadores de Saúde, mas os doentes idosos têm em Portugal uma das piores qualidades de vida, no final da vida. Num momento em que o SNS se depara com uma crise sem precedentes, pareceria mais natural cuidar dos idosos e da sua qualidade de vida, do que pensar como abreviar a sua morte.

Preocupa-me, num momento em que a longevidade aumenta, que uma qualquer Lei permita que, a pedido, e de uma forma mais ou menos escrutinada, alguém peça e lhe seja concedida uma “boa-morte”.

A Medicina obriga a respeitar a autonomia de cada um de nós, limitada à moralidade ética profissional, mas, relativamente às vontades finais, o testamento vital, feito em condições bem mais estáveis, salvaguarda, hoje, a vontade de cada um relativamente ao nível de cuidados que pretende para si próprio perto do fim. Ao longo da minha vida, reuni com as famílias e falei com os doentes, vi decretar ordens de não reanimação e ajudei a cuidar nesses momentos: mais do que uma injeção letal, parecerá de maior humanidade o carinho de uma família.

O risco maior é o de abrirmos uma enorme caixa de Pandora: a da perigosa e cruel generalização da eutanásia, levando à “rampa deslizante” e ao homicídio de doentes indefesos, por causas frívolas e ao abrigo da Lei que os deveria ter protegido.

Em teoria, muitos encontrarão motivos que justifiquem a eutanásia. Na prática, acho-a perigosa na ação, injustificada na prioridade e incompreensível na pressa.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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