O tempo, ou a falta dele, para ler e reflectir (4mn)

A inclusão num texto do respectivo tempo de leitura, porque consagra o elemento “tempo” como um dos critérios de escolha, aprofunda, a meu ver, o caminho da superficialidade a que se vem assistindo, comprometendo ainda mais o anterior paradigma de espaço-tempo que sempre foram considerados essenciais para a uma correcta apreensão dos conteúdos lidos.

Há algum tempo, num grupo de WhatsApp a que pertenço, um participante enviou uma mensagem um pouco mais longa, explicando com detalhe os motivos pelos quais não iria poder aparecer num determinado encontro. Com uma única excepção, todos se bastaram com uma leitura transversal para chegar ao único (?) ponto essencial: o de que ele não iria. Os motivos, aliás bastante válidos e interessantes, passaram completamente ao lado.

Coincidentemente, há dias vi com muito interesse uma entrevista a Evan Williams, um dos fundadores do Twitter, na qual ele dizia que este meio de comunicação veio encurtar brutalmente a forma como as pessoas se expressam, já que cada tweet começou com um máximo de 140 caracteres, tendo alargado para uns ainda parcos 280 apenas em 2017. Este meio, a par de outros idênticos, veio privilegiar uma expressividade directa e baseada em reflexões (?) pouco ou nada desenvolvidas, atalhando em demasia. De facto, a menos que se faça como Trump que tem por hábito escrever múltiplos e sucessivos tweets sobre um assunto, variando esse número em função da maior ou menor fúria com que está no momento, convenhamos que um tweet é demasiado curto para dizer o que quer que seja. Ainda assim, diz quem estuda o fenómeno que, mesmo sendo, hoje em dia, tecnicamente possível enviar mais do que 140 caracteres, apenas pouco mais de 10% dos tweets o fazem, o que demonstra bem que a expressividade curta veio para ficar.

Williams também diz na entrevista o que é óbvio: que a internet se tornou num local de pouca ou nenhuma reflexão e maturação, propensa a impropérios instigados por leituras rápidas de mensagens curtas. Terá, então, decidido contribuir para a inversão desta tendência, criando uma plataforma agregadora de textos mais desenvolvidos chamada Medium, na qual é possível ler-se sobre muita coisa, usando-se as potencialidades da tecnologia (por exemplo, escolher tópicos ou autores específicos) contra uma anuidade fixa. A intenção será a de fomentar uma leitura reflexiva e imersiva, remando assim contra a corrente. No entanto, quem acede à plataforma (gratuita para as primeiras leituras), repara desde logo que existe uma informação que não passa despercebida e que, pelos vistos, será tão importante nos dias que correm quanto atractiva para quem escolhe as suas leituras: ao lado do título do texto está a indicação do tempo de leitura estimado, por forma a que o leitor saiba de antemão quanto tempo vai gastar. Tal informação passa, assim, a par do título e da temática, a ser determinante para quem escolhe um determinado texto.

Porém, o que à primeira vista poderia parecer inócuo e até benéfico, pode ter efeitos perversos: seleccionar a leitura em função do tempo que se tiver disponível (o que, na aparência, até é conveniente), acaba inevitavelmente por condicionar essa leitura, já que a restringe temporalmente, com isso correndo-se o risco de o conteúdo, para além do próprio autor, ficarem secundarizados. Deixa, pois, de haver espaço para improvisos ou mergulhos na leitura: qualquer um sabe à partida que, ao escolher um determinado texto, demorará em média um certo número de minutos a completar a sua leitura.

Pus-me, então, a pensar na utilização possível dessa informação. Quer dizer, saber se irá demorar-se 3 ou 5mn a ler o texto A ou B, que interesse real pode ter na organização da vida diária? Não faltam situações concretas limitadas temporalmente, por exemplo, no metro ou no comboio entre a estação de partida e a de destino, num semáforo, na fila de espera para ser atendido ou numa pausa entre trabalhos. Porém, francamente, não creio que haja alguém convictamente capaz de defender que se escolhe um texto em função de qualquer dos referidos tempos de transição. O que acontece é um pouco mais pernicioso: a indicação dos tempos de leitura corresponde ao mundo actual, no qual todos nos pautamos, porventura em demasia, por tempos e pelo próprio tempo. O improviso, assim como a reflexão e a concentração, estão a desaparecer, exactamente porque o ritmo do tempo não lhes dá espaço.

A informação do tempo de leitura é, na verdade, uma espécie de disclosure do tempo que o leitor tem à sua frente para cumprir a tarefa. O curioso é que isso é feito com a intenção de atrair novos leitores e incentivar a leitura. Existe, pois, aqui um evidente paradoxo porque, ao mesmo tempo que o criador da referida plataforma quis, segundo o mesmo, fomentar a reflexão, sujeitou a escolha dos textos ao tempo que levam a ser lidos. Ora, numa altura em que o tempo é breve e sincopado, quer-me parecer que a informação em causa fomenta a escolha de textos curtos em detrimento de outros mais extensos e porventura complexos. Se assim for, fica definitivamente postergado um dos efeitos mágicos da leitura que é a imersão no texto e no seu objecto, acompanhada da inerente e saudável perda de referências temporais.

É evidente que também os jornais se debatem com este problema: já não são apenas as notícias mais extensas ou o jornalismo de investigação – os quais requerem mais e melhor tempo e atenção – que estão em causa, mas também todo o tipo de notícias e crónicas que levem mais algum tempo do que o de um instante medido em escassos minutos (segundos?).

Aparentemente, a escolha segundo este critério traduz-se numa tendência presente e futura que se imporá rapidamente como o novo normal. Daí o sucesso – lento é certo, mas firme – dos podcasts e dos audiobooks: para além de uma apreensão mais fácil, permitem a realização de outra(s) tarefa(s) enquanto se ouve, o que se conjuga por completo com os novos tempos do multitasking.

A inclusão num texto do respectivo tempo de leitura, porque consagra o elemento “tempo” como um dos critérios de escolha, aprofunda, a meu ver, o caminho da superficialidade a que se vem assistindo, comprometendo ainda mais o anterior paradigma de espaço-tempo que sempre foram considerados essenciais para a uma correcta apreensão dos conteúdos lidos.

Williams talvez tenha querido criar uma plataforma diferente para estimular maior reflexão, mas, infelizmente, o resultado não me parece que seja esse. Subtilmente, os “códigos” ali utilizados vão na esteira do que é actualmente usado nas plataformas do mundo digital. Por isso, para além de um sentido crítico, é também e sobretudo preciso algum distanciamento – o que só se consegue com tempo – para se ganhar perspectiva e perceber que de boas intenções está o inferno cheio.

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