Os anos 2020 e a desglobalização

Se a tendência para a fragmentação em Intranets nacionais ou regionais se acentuar, será uma espécie de regresso ao passado. As fronteiras nacionais marcarão o comércio, os movimentos de pessoas e o ciberespaço, num duro golpe na utopia tecno-libertária e na globalização liberal.

1. Se a tendência para a fragmentação da Internet (splinternet) é um bom indicador de desglobalização — e parece ser —, os anos 2020 podem mostrar um mundo bem menos globalizado do que estávamos habituados. A internet é um símbolo maior da actual globalização. A sua eventual compartimentação e fragmentação, em Intranets nacionais e/ou Internets de grupos regionais de países, terá consequências sobre esta. A partir do início dos anos 1990, após a invenção da World Wide Web por Tim Berners-Lee, tornou-se um instrumento crucial da globalização. A interacção humana atingiu níveis sem precedentes, quer pela dimensão dessa interacção, quer pela rapidez com que passou a poder ser efectuada. Foi assim que emergiu gradualmente a actual sociedade em rede, na expressão do sociólogo Manuel Castells, que se manifesta no plano político, económico, dos movimentos da sociedade civil e um pouco em todas as facetas da vida humana.

2. Por desglobalização entende-se usualmente um conjunto de processos que levam à diminuição da interdependência e da integração do mundo, ou em partes substanciais deste. Tais processos afectam, desde logo, as economias nacionais, as empresas e o consumo, reduzindo o volume do comércio externo e afectando as cadeias de produção, distribuição e abastecimento. Produz também consequências que se repercutem nas dimensões social e política da vida humana. Numa perspectiva económica, o termo desglobalização tem sido frequentemente usado para descrever os períodos históricos de redução mais ou menos drástica do comércio e investimento a nível internacional tal como ocorreu, por exemplo, entre 1914 e 1945, ou num ciclo mais longo, entre 1914 e 1970. Uma questão vem de imediato à mente: estamos hoje a viver um período de desglobalização e/ou está seriamente em perspectiva um período deste tipo nos anos 2020?

3. O índice de globalização do ETH / KOF — Instituto Económico Suíço, em Zurique (Konjunkturforschungsstelle) pode ajudar-nos na resposta a este questão e a identificar qual(ais) a(s) tendência(s) em curso . É um índice abrangente que inclui as dimensões económica, social e política da globalização. Inclui também 195 países e engloba um período alargado que vai de 1970 a 2017. Para uma avaliação da globalização e das suas tendências é feita uma distinção entre globalização de facto e globalização de jure, quer no índice geral, quer nos índices específicos das já referidas dimensões económica, social e política. Assim chega-se a uma classificação dos países onde é usada uma escala de 1 a 100. O índice compreende 42 variáveis diferentes, que são agregadas com determinados pesos específicos atribuídos a cada uma. Naturalmente que, como todos os trabalhos deste tipo, assentes uma aproximação quantitativa à realidade, nunca a traduzem na sua total complexidade e são sempre susceptíveis de reparos ou críticas.

4. Analisando os resultados mais recentes do índice de globalização — os dados são referentes ao ano de 2017 —, constata-se que a Suíça (91.19) continua a ser o país mais globalizado do mundo. É seguida pela Holanda (90.71), encontrando-se depois a Bélgica (90.59), a Suécia (89.93) e o Reino Unido (89.84). Quanto a Portugal, aparece relativamente bem posicionado, no 15.º lugar (84.72). Importa notar que os pequenos países (pelo menos no mundo desenvolvido), tendem, em regra, a estar mais globalizados do que os grandes países. Estão mais interligados ao mundo exterior e dependem mais deste. Nos grandes países, uma parte considerável das transacções comerciais (e outras) ocorrem internamente. Assim, as maiores economias não estão tipicamente nos primeiros lugares do ranking, como mostram os casos norte-americano e chinês. No índice geral, os EUA estão no 23.º lugar (82.41) e ocupam a 59.ª posição na globalização económica, a 27.ª na globalização social e a 14.ª na globalização política. Quanto à China, o seu maior concorrente e rival na actual globalização, ocupa o 80.º lugar (65.08) nesse mesmo índice geral.

5. À primeira vista, face aos resultados do índice de globalização do ETH / KOF, parece ser mais correcto falar num abrandamento da globalização do que de uma desglobalização. A existir, a desglobalização terá de ser suportada por tendências consistentes de reversão da globalização. Todavia, se afinarmos a análise no âmbito da globalização económica, e, mais especificamente, incidirmos na globalização comercial, podemos detectar tendências de reversão que também são evidenciadas no teor do estudo do ETH / KOF. Aí afirma-se claramente que “A integração do comércio internacional (globalização do comércio de facto) diminuiu desde 2014, e as últimas tendências sugerem que o comércio mundial deverá enfraquecer ainda mais”. Aspecto importante a notar é o de que o índice de globalização não reflecte, ainda, os efeitos da guerra comercial EUA-China. Tudo indica que os dados referentes a 2018 e a 2019 mostrarão, de forma mais acentuada, as tendências de reversão já existentes até 2017, pelo menos nessa dimensão da globalização.

6. Num outro olhar sobre a desglobalização, Peter A. G. van Bergeijk,  da Universidade Erasmus, em Haia, na Holanda, em On the brink of deglobalisation... again (2018), colocou em paralelo os anos 1930 com o período actual. A sua análise sugere estarmos no limiar de uma nova era de desglobalização. Sobre o papel dos EUA nesta, notou que estes parecem estar a passar de uma potência hegemónica e estabilizadora para uma espécie de ‘perturbador’ do sistema internacional comercial instituído. Van Bergeijk sugere uma outra ideia que merece reflexão, sobre o impacto do factor político na desglobalização — em especial sobre a atitude das democracias no passado e no presente (p. 68): a política tem uma correlação significativa com a desglobalização no contexto dos dois colapsos do comércio mundial, mas o sinal de impacto da política é oposto nos dois períodos. Na década de 1930, as democracias parecem ter reduzido as pressões para a desglobalização. Nos anos 2000, as pressões para a desglobalização surgem especialmente nas democracias”.

7. Parece inequívoco que o comércio internacional e a Internet mostram ambos sinais de desglobalização. A questão em aberto é a de saber se estamos perante uma tendência conjuntural, a qual se dissipará mais tarde ou mais cedo, ou a caminhar para um processo estrutural que marcará profundamente os anos em devir. Seja como for, não é certamente um acaso que a China — país que disputa a primazia mundial com os EUA —, tenha surgido nos últimos quinze anos como pioneira na splinternet. Os chineses implementaram uma “grande firewall” por razões simultaneamente políticas, de censura e de segurança. À China juntou-se recentemente a Rússia. Esta última, em finais de 2019, anunciou a RuNet, uma Intranet independente que pode ser desligada do resto do mundo, tal como a chinesa. Também aqui há sinais de uma nova espécie de ‘guerra-fria’. Ironicamente, a Internet tem a sua génese nos tempos da Guerra-Fria. Esta surgiu nos anos 1960 nos EUA como uma rede de comunicação militar entre computadores numa situação de guerra. Se a tendência para a fragmentação em Intranets nacionais ou regionais se acentuar, será uma espécie de regresso ao passado. As fronteiras nacionais marcarão o comércio, os movimentos de pessoas e o ciberespaço, num duro golpe na utopia tecno-libertária e na globalização liberal. Mas também poderá não ser esse o mundo em devir. Veremos o que os anos 2020 nos reservam.

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