Oito mitos sobre gravidez e aborto

Ao deitar por terra conceitos errados sobre gravidez e aborto, podemos finalmente iniciar uma conversa aberta que normalizará a experiência, retirará o fardo doloroso do estigma e do sigilo.

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Hoje sabemos que apenas 1% das mulheres sofrem abortos recorrentes e, dessas, cerca de três quartos passam a ter filhos a termo Nuno Ferreira Santos

Na década e meia que passei em pesquisas para o meu livro The Myth of the Perfect Pregnancy: A History of Miscarriage in America, discuti gravidez e aborto com centenas de outros pais no parque infantil e com colegas historiadores em conferências profissionais. Os mesmos pressupostos, comuns e incorrectos, surgiram várias vezes. E muitos destes eram os mesmos que os meus, antes de ter iniciado a minha investigação e antes de ter sofrido um aborto espontâneo.

É difícil falar sobre aborto. É triste e pessoal, mas não é incomum ou antinatural. E os mitos científicos e históricos tornam o aborto mais difícil de entender e mais difícil de discutir. Ao deitar por terra aqueles conceitos errados sobre gravidez e aborto, podemos finalmente iniciar uma conversa aberta que normalizará a experiência, retirará o fardo doloroso do estigma e do sigilo e nos dará um terreno comum para criar melhores maneiras de pensar sobre a gravidez e de lidar com o aborto. Aqui, examino oito desses mitos na esperança de promover uma melhor compreensão.

MITO: O aborto é uma complicação rara da gravidez

FACTO: Aproximadamente 20% das gestações confirmadas terminam num aborto, sobretudo nos primeiros meses. Cerca de um terço das mulheres que tiveram dois filhos também tiveram um aborto espontâneo. Essa estimativa da taxa de aborto subiu na última década, não porque os abortos se tornaram mais comuns, mas porque estamos a diagnosticar as gestações mais próximas da concepção. Ou seja, uma gravidez identificada mais cedo, com um teste em casa ou um exame de sangue, cerca de cinco dias antes da primeira menstruação em falta (cerca de nove dias após a concepção), tem na verdade 30% de hipóteses de abortar. E muito mais ovos fertilizados nunca chegam a implantar-se. Estatisticamente, um ovo fertilizado tem uma probabilidade significativamente maior de perecer do que de se transformar num bebé de termo.

MITO: Ter um aborto espontâneo significa que é provável que uma mulher venha a ter mais abortos

FACTO: Embora isso não seja verdade — uma mulher que teve até três perdas no início da gravidez não tem mais oportunidade de abortar a próxima gravidez do que aquela que não abortou anteriormente —, a ideia tem uma longa história. Antes do século XX, era considerado crucial que os corpos tivessem “hábitos” regulares, como períodos menstruais regulares, defecação regular e horários regulares para comer e dormir. Quando se tratava de uma gravidez, médicos e pacientes temiam que um aborto precoce iniciasse o hábito de aborto. Hoje sabemos que apenas 1% das mulheres sofrem abortos recorrentes e, dessas, cerca de três quartos conseguem ter bebés, mais tarde.

MITO: Se as mulheres tiverem aconselhamento médico, poderão evitar a maioria dos abortos

FACTO: A maioria dos abortos não é evitável. Desde o início do século XX, os cientistas sabem que a maioria dos abortos é causada por anomalias cromossómicas que tornam um embrião incompatível com a vida. Antes do século XIX, os médicos pensavam que os abortos tinham de ser causados pelo corpo, hábitos ou ambiente da mulher grávida, mas geralmente não culpavam as mulheres. Isso mudou em meados do século XIX, à medida que as taxas de aborto aumentavam rapidamente. Cada vez mais, os autores suspeitavam que as mulheres sabotavam a gravidez e culpavam-nas pelos abortos. No início do século XX, no zelo por melhorar os resultados da gravidez, os defensores dos cuidados pré-natais instaram as grávidas a adoptarem uma série de novas medidas (e sem fundamento médico), como uma dieta antiobstipação e o banho regular para livrar o corpo das toxinas que se acreditava causar pré-eclâmpsia. Também aconselhavam as grávidas a evitar, por exemplo, o uso de máquinas de costura com pedal, levantamento de pesos ou ter relações sexuais. No entanto, excluindo a hipótese de no futuro se abraçar a tecnologia reprodutiva em larga escala, que permitiria aos médicos criar embriões em laboratório e testá-los quanto à solidez genética antes de implantá-los no útero de uma mulher, é improvável que consigamos evitar a taxa naturalmente alta da perda precoce da gravidez.

MITO: No passado, as mulheres ignoravam os seus corpos. Portanto, no início da gravidez, não percebiam que estavam grávidas e, quando tinham uma perda precoce, também não a identificavam.

FACTO: Na verdade, antes do século XX, as mulheres tinham uma experiência muito mais pessoal com a gravidez do que as mulheres de hoje; portanto, pelo menos a partir de uma segunda gestação, elas tinham uma compreensão mais afinada quanto aos seus sintomas pessoais de gravidez. No entanto, por não terem um teste que daria a confirmação definitiva da gravidez, quando abortavam, interpretando o sangramento como a chegada de um período menstrual tardio ou como a matéria-prima de uma gravidez que falhou em produzir um bebé.

MITO: As mulheres sempre desejaram poder controlar o número de filhos que tinham, mas até ao controlo moderno da natalidade, elas simplesmente não eram capazes.

FACTO: Na América colonial, a maioria das mulheres tinha a percepção que as famílias numerosas são fonte de apoio financeiro e de admiração da comunidade. Por volta da época da Revolução Americana, os casais começaram a idealizar famílias menores e tomaram medidas para as ter. Usando métodos tradicionais de controlo de natalidade — abstinência, coito interrompido, duches [vaginais] e aborto —, os casais conseguiram cortar o número de filhos para metade. A partir de 1957, a pílula contraceptiva ofereceu um controlo mais preciso. Juntamente com outros métodos modernos, a pílula permitiu aos americanos controlar com mais rigor a reprodução — mas o movimento cultural tinha começado dois séculos antes.

MITO: Tecnologias como as ecografias levam-nos, inevitavelmente,​ a criar laços com os nossos bebés logo no início da gravidez.

FACTO: Desde a década de 1970, os americanos desenvolveram a ecografia num ritual cultural elaborado de “conhecer o bebé”. As palavras do imagiologista e as expectativas que as mulheres e os seus parceiros levam para o exame, permite-nos “ver um bebé” numa imagem a preto e branco, nebulosa, logo às oito semanas de gestação. Em alguns países, como a Grécia e Israel, os médicos não incentivam essa expectativa de “vínculo” durante os primeiros exames, porque consideram a ecografia um exame estritamente médico, uma maneira de excluir problemas durante a gravidez.

MITO: O movimento antiaborto é o principal factor por trás da mudança cultural nas últimas décadas para o luto pelas perdas de gravidez muito precoces.

FACTO: A retórica e as imagens antiaborto promoveram a ideia de que a gravidez envolve um bebé totalmente formado desde a concepção. Mas factores não políticos, como a ascensão do século XX de uma enorme máquina de marketing que visa os pais e os consumidores, são tão importantes quanto essa mudança. Nas últimas décadas, os profissionais de marketing descobriram como alcançar as mulheres no início da gravidez usando dados que elas compartilham com sites e aplicativos. À medida que as empresas competem para obter a lealdade das mulheres grávidas, incentivam-nas a envolverem-se emocionalmente durante as suas gestações e a começarem a comprar coisas para o bebé. Mesmo numa altura em que a gravidez ainda pode resultar num aborto, as grávidas recebem listas de nomes de bebés juntamente com talões de desconto para carrinhos e fraldas.

MITO: Todas as mulheres sofrem com os seus abortos, principalmente quando a gravidez era desejada.

FACTO: Até ao século XX, a maioria das famílias perdeu pelo menos um filho precocemente. E, em comparação com os dias actuais, o aborto simplesmente não era visto como o mesmo tipo de perda. Até meados do século XX, era considerado incomum ou impróprio para uma mulher lamentar uma perda até bem tarde na gravidez. Hoje em dia, porém, as mulheres podem sentir-se estigmatizadas se não lamentarem uma perda, não importa quão cedo na gravidez.

As respostas às perdas precoces da gravidez são individuais e variadas. Algumas mulheres sofrem um aborto espontâneo como a morte de uma criança; outras vêem-na como a perda de uma oportunidade. Algumas mulheres podem precisar de tempo para gerir os seus sentimentos antes de tentar novamente, enquanto outras sentem-se melhor se engravidarem o mais rápido possível. A perda de uma gravidez é um fenómeno emocionalmente complexo, profundamente moldado pelo contexto social e histórico. As mulheres também podem interpretar as suas perdas de maneira diferente em diferentes momentos das suas vidas e trajectórias reprodutivas.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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