Contagem regressiva para a década que aí vem

Só com o descaramento racional (sim, existe) se combaterá com sucesso o descaramento irracional que tanto terreno tem ganho. A realidade de hoje infelizmente prova-o e a nova década pede-o.

10. Ainda em 2015, noutro jornal, escrevi que da piores coisas que podiam acontecer à evolução da humanidade seria os americanos elegerem Donald Trump como presidente da nação mais poderosa do mundo. Um país como os EUA que serviu como farol do ocidente em muitas áreas e que rapidamente perderia muita dessa luz. Já no início desse ano e a nove meses da eleição, equacionei como outros a sua vitória com base na força e na representação fanática do seu eleitorado.

9. Nos últimos anos, muito do que se previa catastrófico com Trump, foi. Mas uma outra parte não terá sido. E é essa parte que me importa hoje. A mesma que limita o seu poder e a de todos os seus discípulos como Bolsonaro na América do Sul ou Orbán na Europa. A que entende o populismo de hoje pelos olhos da crise despoletada em 2007 pelo subprime e que afetou grande parte dos mercados ocidentais nos anos subsequentes. A que sabe que a receita neoliberal não ajudou. Adensou.

8. Por muito que outro grupo como o dos liberais radicais faça por ignorá-lo: foi em grande parte o Estado um pouco por todos os países ocidentais e também em Portugal, que através de injeções de capital mais ou menos justas, menorizou o descalabro a que se assistiu em grande parte da gestão privada dos bancos e das empresas. Os nossos liberais fazem cartazes por tudo e por nada sem que percebam que o nosso sistema privado é em muitos setores verdadeiramente deficitário e não subsistiria sem esse mesmo Estado. Entenda-se o liberalismo, compreendendo este enquadramento.    

7. Os trumpistas globais que em nada se identificam com a cultura, muito menos com a projeção que dela advém em cada país, desprezam os meios de comunicação social que possam fugir às verdadeiras fake news. O projeto europeu, mesmo como aliado dos EUA, além de génese contrária, também é inimigo do novo status quo que nasceu com Donald Trump.

Comparemo-la aos EUA de hoje:   

A União Europeia continua a construir o mais amplo e abrangente governo de poder responsável de que há memória. Nenhum projeto político, económico ou social é tão eficiente globalmente a canalizar fundos e a delinear projetos pelos sete cantos do mundo. Acresce o seu papel nos países mais desfavorecidos, fortalecendo as instituições democráticas nos mesmos. Esta influência global torna-a muitas vezes mais lenta e ponderada, mas é o consenso europeu por detrás de cada decisão que confere às mesmas um peso maior e sem paralelo. O difícil é mesmo chegar a esse consenso entre os 27 Estados-membros.

6. O contraste desta realidade é um Trump que anulou o poder responsável nos Estados Unidos, substituindo-o pelo belicismo e uma espécie de reação instantânea e desconexa a tudo o que surge. Todos os que desobedecem ou ignoram a sua política (seja lá o que isso for) e as instruções da Casa Branca devem ser esmagados. Através de procedimentos legais ou ilegais que põem em causa a democracia como o próprio processo de impeachment tem desmascarado.

5. No que diz respeito aos mercados e à própria concorrência, a Europa tem o melhor e mais relevante pensamento e uma burocracia supervisora funcional ímpar. Pelo contrário, os EUA caminham vertiginosamente para um sistema ultra concentrado, extenso, e o mais monopolista que alguma vez existiu.

4. A ascensão da energia verde com o mais recente e ambicioso green deal da comissão de Ursula Von Deyen é também a prova de que esta transição ocorre de forma mais eficaz e acentuada na Europa, enquanto nos EUA, de forma infantilizada, continua a ser vista como uma questão entre esquerda e direita. Não raras vezes e contra todas as evidências científicas é associada a slogans radicais e impopulares da primeira. Se na Europa as mudanças climáticas já são entendidas como a questão proeminente da próxima década (s) e isso conduz à necessidade de agrupamentos de novas ideias políticas, os americanos dividem-se e um senado maioritariamente republicano trava quaisquer iniciativas que procurem novas diretivas em prol das alterações climáticas. Já para não falar das ameaças aos monopólios e à plutocracia de Trump.

3. Dentro de pouco tempo, a imposição por parte de cada país a custos mais altos das emissões de carbono trará aceitação e leverage internacional. É difícil que tal não se verifique nas tarifas às exportações dos americanos.

2.  Parece-me ainda que na nova década haverá dois agrupamentos internacionais: um que impõe impostos baseados em emissões de carbono e outro que não. As receitas nos países que as impõem aumentarão. Se a resposta mundial às alterações climáticas se dividir, tal como já acontece nos EUA, é expectável que a Europa se mostre mais coesa e orientada para este tema. De forma natural e através do green deal, aumentará a receita para apoiar uma política ecológica sustentada pelo centro-direita e centro-esquerda.  

1. Importará despertar as edge people a que Tony Judt se referia faz agora mais de uma década. Que sejam descarados a invocar a razão da evolução. O centro terá de ser mais ousado que os extremos. Os populistas têm sido eficazes ao apontar receitas fáceis para temas complexos e demasiados líderes ignoram-nos, julgando que isso resulta. Não resulta.  

Só com o descaramento racional (sim, existe) se combaterá com sucesso o descaramento irracional que tanto terreno tem ganho. A história confirma-o. A realidade de hoje infelizmente prova-o e a nova década pede-o.

 O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico    

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