Eleições britânicas

Estas eleições podem abrir uma caixa de Pandora se os políticos não souberem gerir uma crise de identidade e de visão de futuro que está muito longe de ser solucionada.

Que fazer quando os conservadores ganham as eleições de forma esmagadora em Inglaterra, tornando inevitável a separação da União Europeia? Ver, no dia seguinte, o programa hilariante semanal da BBC Have I got news for you (disponível no YouTube), que goza com todos os políticos da forma mais radical que se possa imaginar. Boris Johnson foi o bombo da festa, com extratos de entrevistas e situações ridículas da campanha eleitoral comentadas por quatro comediantes (o convidado especial, a conservadora Nicky Morgan, teve que entrar no jogo), que sublinhavam o lado mentiroso, desonesto, esquivo, narcisista, indigno de confiança do primeiro-ministro. Há muito poucos países onde este tipo de humor seja possível imediatamente a seguir às eleições, transformando o vencedor em motivo de chacota. Trata-se do Reino Unido no seu melhor.

O sistema eleitoral britânico pesou nos resultados. A derrota dos trabalhistas teria sido muito maior com um sistema proporcional, pois muitos votaram com enorme relutância, sabendo que o voto noutro partido de esquerda ou centro-esquerda, sobretudo os Liberais Democratas, seria perdido para os conservadores em muitas circunscrições. Da mesma maneira, os conservadores absorveram os votos do Partido do Brexit, que desceu de 15% de intenções de votos para 2% de votos reais. O peso da Inglaterra, com 84% do eleitorado, fez-se sentir. Os conservadores perderam na Escócia, onde o Partido Nacional Escocês obteve a maior vitória de sempre, com 45% dos votos, perderam no País de Gales, embora com ganhos significativos, e perderam na Irlanda do Norte, onde os partidos antibritânicos obtiveram a maioria dos lugares. Os riscos de desagregação da monarquia britânica são evidentes, com uma nova batalha politica pelo referendo da independência na Escócia, enquanto a situação na Irlanda do Norte poderá regressar às primeiras páginas dos jornais. Na Inglaterra, a maioria do eleitorado conservador declara não se importar com a separação dos outros componentes da monarquia se for esse o preço a pagar pela saída da União Europeia. O desinteresse do centro é sempre decisivo nas secessões.

O “Brexit”, como se previa, estruturou os resultados eleitorais: o Partido Conservador registou 43,6% dos votos. Somados com 2% do Partido do Brexit e 0,8% do Partido Democrático Unionista da Irlanda do Norte, que defendem a saída da União Europeia, dá 46,4% dos votos. As últimas sondagens sobre a União Europeia davam 47% a favor do “Brexit” e 53% a favor da manutenção. Curiosa coincidência, embora a distribuição dos votos pelos partidos a nível local não tenha acompanhado estritamente a linha de divisão: os trabalhistas perderam em áreas de voto “Brexit” (caiu a chamada muralha vermelha no antigo norte industrial da Inglaterra) mas também perderam votos em áreas Remain. O caráter cosmopolita de grandes cidades como Londres, Birmingham, Manchester ou Liverpool impediu maior progresso dos conservadores. A ambiguidade política respeitante à saída da União Europeia teve custos devastadores para os trabalhistas, enquanto a clareza política dos conservadores concentrou votos.

A rutura com a União Europeia poderia ter sido evitável com melhores políticos. Jeremy Corbyn nunca se empenhou na campanha favorável à União Europeia para o referendo, enquanto a declaração de neutralidade nesta última campanha política foi fatal. Se os Brexiteers tinham pouca vontade em votar nele, os Remainers viram igualmente pouca utilidade. Uma larga percentagem do voto trabalhista foi contra os conservadores, não a favor do partido. Os anteriores líderes conservadores, sobretudo Cameron, tiveram medo de enfrentar os preconceitos antieuropeus de boa parte da população. A verdade é que o Reino Unido aderiu à União Europeia em 1973 devido a declínio económico; nessa altura a Itália tinha melhor prestação. Foram os anos de integração europeia que permitiram a recuperação económica do Reino Unido, agora a terceira economia, muito próxima da França, enquanto a posição de Londres como grande centro financeiro mundial beneficiou do apoio europeu.

Sendo certa a saída da União Europeia, será conveniente que os dois lados cheguem a um acordo comercial que contenha o estrago e não permita a deflagração de uma nova crise económica. Mais complicada será a estabilização política da monarquia britânica, com a ameaça de independência da Escócia e de novas perturbações na Irlanda do Norte. Parece que a Inglaterra está preparada para sacrificar a configuração atual da monarquia, mas será que Londres está disposta a sacrificar a sua posição cosmopolita dominante aos interesses do interior, ou seja, de camadas etárias idosas alheadas da nova realidade económica? Estas eleições podem abrir uma caixa de Pandora se os políticos não souberem gerir uma crise de identidade e de visão de futuro que está muito longe de ser solucionada.

Finalmente, a renovação do pessoal político é essencial. Ficou à vista que a dupla Corbyn/McDonnell não tinha preparação para afrontar e argumentar com os conservadores formados nas escolas privadas e nas melhores universidades. A prestação no Parlamento e nas entrevistas foi francamente pobre, quando não era difícil colocar os conservadores na defensiva. Boris Johnson foi para mim uma surpresa, não vi a excelência de retórica que lhe era atribuída. O único grande retórico conservador é Michael Gove, embora os tiques faciais não lhe sejam favoráveis. A decisão trabalhista de ignorar o “Brexit” e propor toda uma série de medidas de mudança económica radical foi pouco inteligente, tendo obtido o efeito oposto ao pretendido, enquanto prejudicaram uma futura reforma económica. Na área do centro-esquerda, Jo Swinson foi uma desilusão sancionada pelas eleições, pois perdeu o lugar no Parlamento e já se demitiu. A única líder de esquerda com discurso articulado acima da média é Caroline Lucas, dirigente do Partido Verde, que segurou o seu lugar no Parlamento, mas com o sistema eleitoral de maioria simples tem poucas hipóteses de progressão.

Uma última nota sobre o Reino Unido. Não se pense que fica entregue a uma elite reacionária e atávica. Trata-se de um país com uma enorme capacidade económica, as melhores universidades da Europa e do mundo, excelentes museus, equipamentos culturais, escritores e artistas. Existe um dinamismo social que tenho visto raramente noutros países. O debate em torno do “Brexit” levou a uma profunda reflexão social. As opiniões favoráveis a imigrantes estão acima dos 40%, enquanto na Europa continental estão abaixo dos 15%. A capacidade de reação contra um mau governo é também segura. A fratura resultante do “Brexit” levará muito tempo a sarar, mas há condições para garantir uma sociedade civil ativa e participante. Será interessante observar como os conservadores vão gerir os votantes dependentes de benefícios sociais que agora adquiriram. A vantagem da democracia é que dá lugar a novas votações, emendas, arrependimentos, mudança de direção política.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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