Black Friday: metade do dobro de nada

Mesmo que escapemos aos constantes estímulos visuais e sonoros das grandes cidades, somos assediados por constantes emails, SMS ou publicações nas redes sociais, estrategicamente escolhidas de acordo com as nossas pesquisas nos motores de busca.

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LUSA/JASON SZENES

Por estes dias, sucedem-se as oportunidades imperdíveis de adquirir tudo pela metade do dobro do preço habitual. João Matos Fernandes, ministro do Ambiente e Acção Climática, imbuído de um (raro) momento de lucidez política muito louvável, classificou a Black Friday como “um expoente máximo e negativo de uma sociedade capitalista”. E de facto, é uma teia bem montada: mesmo que escapemos aos constantes estímulos visuais e sonoros das grandes cidades, somos assediados por constantes emails, SMS ou publicações nas redes sociais, estrategicamente escolhidas de acordo com as nossas pesquisas nos motores de busca. Emprenhamos pelos ouvidos e pelos olhos a ideia do consumo como preenchimento do nosso vazio existencial, de meio para atingir o fim da auto-realização, de que vivemos em função do “ter” ao invés do “ser”. Mas como passou o consumismo a ser uma realidade inexorável das nossas vidas?

Em 1954, Maslow publicou A Theory of Human Motivation, tomando como base empírica a observação de macacos e concluindo que estes faziam escolhas comportamentais de acordo com as suas necessidades básicas. A analogia para com os humanos é simples: a fome e o sono aguçam-nos facilmente a irritabilidade e, enquanto não os satisfizermos, entramos numa espiral infinita de agastamento. Bom, falo por mim, pelo menos.

Maslow derivou assim uma hierarquia de necessidades ilustrada por uma pirâmide de cinco camadas. A teoria pode explicar-se de uma forma simplista, temos primeiro que atingir os mínimos olímpicos do bem-estar físico: comida, bebida, ar, abrigo, sono. Depois temos as necessidades de segurança, afectividade e sentimento de pertença (sociais e familiares), a nossa auto-estima (reputação, autonomia) e, finalmente, a nossa realização pessoal.

O progresso e desenvolvimento industrial no pós-guerra foram, de facto, prodigiosos na satisfação das nossas necessidades fisiológicas, garantindo, no mundo dito desenvolvido, onde incluo Portugal, alimentação e habitação à quase totalidade da população. Relativamente às restantes camadas da pirâmide, o consumismo parece ter absorvido todas as outras necessidades, assumindo nas últimas duas décadas um crescimento exponencial. Actualmente, medimos a nossa auto-estima, integração social e realização pessoal em função do poder de compra que detemos. Não raras vezes, pressionados por truques de marketing soberbamente apurados, cedemos ao impulso de alavancar o nosso poder de compra deslumbrados pela filosofia do “compre agora, pague depois”, comprometendo a nossa sustentabilidade financeira para saciar impulsos plenos de futilidade. Penamos em empregos dos quais não gostamos, que esgotam o nosso tempo e esmifram a nossa energia, para comprarmos coisas que nos convenceram ser imprescindíveis à nossa felicidade.

A situação de inegável emergência climática coloca-nos um incomensurável desafio: como manter os nossos hábitos de consumo face aos óbvios sinais de incompatibilidade com a urgência da sustentabilidade ambiental? Desafio-vos a um exercício de introspecção: seremos assim tão felizes enquanto ávidos consumidores?

Como sugestão à nossa reflexão, ficam os Repórter Estrábico em 2006 e o seu aparentemente inócuo, mas cada vez mais pertinente, tema Mama papa:

Mamã consome
Papá consome
Bebé consome
Consome, filha!
Consome, consome
Mata a fome
Consome consome consome

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