Black Friday. “O consumidor português é viciado em promoções”

“Ortodoxia” europeia dos últimos governos tem sido “desastrosa” para o país, avisa o presidente da Confederação de Comércio e Serviços, João Vieira Lopes, que pede mais investimento público.

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O presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), João Vieira Lopes, está confiante na negociação do acordo global de rendimentos, que arrancou ontem em Concertação Social, nomeadamente, com a parte de alterações às tributações autónomas das empresas. E congratula-se por António Costa o ter “ouvido” quando, na campanha eleitoral, pediu “mais Siza Vieira e menos Centeno”. As primeiras boas notícias para as empresas virão já no Orçamento do Estado, espera, uma vez que já há nova discussão com o Governo apenas sobre a parte fiscal marcada para dia 9. Pode ouvir a entrevista na Renascença hoje, a partir das 13 horas.

O Governo quer os salários a crescer 2,7% no próximo ano. É um aumento comportável para a CCP?
A proposta não foi exactamente essa. O Governo fez um calendário da evolução provável da produtividade e da inflação para os próximos quatro anos, assumindo para 2020 ser previsível haver um aumento de 2,7%. Propôs ainda que tentássemos desenvolver uma política que permitisse aumentar o peso das remunerações do trabalho no total do PIB que em Portugal baixou. A CCP repetiu a proposta que fez na altura do salário mínimo nacional - e que o Governo prevê na sua metodologia - que é definir a evolução do salário em função da produtividade e inflação e uma majoração anual sobre esses indicadores económicos que permita fazer essa aproximação. Mas temos que ter em consideração que as confederações não fazem negociação colectiva, quem faz são as associações e os sindicatos respectivos. E, por outro lado, no caso da CCP, temos uma situação altamente heterogénea: temos o comércio, os serviços às empresas, transportes de mercadorias e públicos, o software. É extremamente difícil um padrão único para todos estes sectores.

Continuamos a ser vistos como um país onde se trabalha muito e a produtividade não corresponde ao número de horas trabalhadas.
A fraca produtividade tem três razões: a falta de qualificação da mão-de-obra; falta de qualificação da gestão, o nosso tecido empresarial tem muitas empresas muito pequenas com fraca qualidade de gestão; e a própria atomização desse tecido empresarial faz com que não haja massa crítica para aumentar a produtividade. Temos que fazer uma melhor utilização dos fundos europeus para formação profissional e para incentivos a que as empresas pequenas ou se fundam ou trabalhem em rede. Infelizmente, seja por uma questão de clientelismo político, seja por facilitismo, os fundos europeus, no passado, foram divididos às fatias por muita gente e depois a produtividade é inevitavelmente baixa.

O sector dos serviços e comércio é o que regista uma taxa mais alta de trabalhadores com salário mínimo. Não há maneira de mudar isto?
Nós englobamos um conjunto de mão-de-obra pouco especializada em trabalho intensivo. Aí, o incremento tem que ser com o incremento global da economia. Propusemos também alguns benefícios às empresas que lhes permitam absorver esses aumentos.

E que benefícios serão esses?
Uma das áreas é a fiscal. O Governo dispôs-se a discutir essa situação no dia 9 antes de o Governo apresentar o Orçamento do Estado. Será o segundo ponto da reunião que existe regularmente antes do Conselho Europeu. Pensamos que não há condições políticas realistas para baixar a taxa nominal de IRC mas as tributações autónomas, que na prática são um imposto sobre os custos, podem ser reduzidas. O Governo mostrou-se aberto a discutir benefícios fiscais para quem invista os lucros na actividade da empresa em vez de os distribuir. Há ainda as nossas propostas sobre os impostos na área das viaturas e incentivos ao arrendamento que possibilitem a mobilidade das pessoas.

O documento de trabalho distribuído pelo Governo não fala na TSU, por exemplo, que a CCP quer que desça para as empresas que fazem aumentos acima da inflação.
Não, mas constará das propostas que nós apresentaremos. Mantemos que seria uma via a explorar.

O facto de estar já marcada essa discussão sobre fiscalidade para antes da apresentação do OE dá-lhe esperança?
Nestas coisas, somos muito realistas. Esperamos para ver. Independentemente do que sair no OE, mantemos o ciclo de contacto com os grupos parlamentares. Por vezes, há questões que se conseguem corrigir na Assembleia da República. O documento que o Governo apresentou é um calendário, é uma elencagem genérica de questões. Da parte do Governo, há muito pouca definição. Isto é um livro aberto. O que conseguiremos ou não fazer é uma questão que nos preocupa. Achamos que o Governo tem que contribuir para o aumento do rendimento disponível das famílias por outras vias, quer seja através do IRS, quer seja por outras medidas como por exemplo baixar o IVA da electricidade. Propusemos que fosse feito em duas fases, primeiro para a taxa intermédia e depois para a taxa mínima.

Então subscreve a declaração de César Araújo, presidente da ANIVEC – Associação Nacional das Indústrias de Vestuário que disse: “Os patrões têm de fazer uma greve aos impostos. Vamos começar a pensar nisso”? Isso é uma boutade. Na Europa, a carga fiscal sobre as empresas em Portugal não é, em termos percentuais, das mais altas. O problema é o rendimento disponível dos consumidores e a necessidade de investimento e a descapitalização estrutural das empresas. O estrito cumprimento das obrigações europeias que estes governos têm mantido tem sido desastroso. Portugal é o país da Europa com menos investimento público, que tem um efeito estruturante e multiplicador. Um pouco a contra-corrente dizemos que não é um benefício tão importante ter um défice zero ou 0,1% ou 0,2%. Preferíamos trabalhar dentro dos padrões europeus com défices um pouco mais altos desde que isso fosse transformado em investimento público e pensamos que, aí, a posição do Governo tem sido demasiado ortodoxa.

Mas houve uma mudança neste Governo. O ministro da Economia está à frente das Finanças na hierarquia e na Concertação tem um papel determinante. São mudanças simbólicas ou importantes?
Vamos ver. Durante a campanha eleitoral, num almoço que fizemos com o dr. António Costa, um desafio que lancei foi o de que precisávamos de mais Siza Vieira e menos Centeno.

Foi ouvido?
Formalmente, fomos ouvidos. Vamos ver as consequências práticas. Do mesmo modo que também consideramos que o sector do Comércio e dos Serviços não estava suficientemente valorizado - existia o secretário de Estado da Defesa do Consumidor. Eu perguntei ao primeiro-ministro também se neste novo governo o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais se passava a chamar secretário de Estado da Defesa do Contribuinte. Aí também fomos ouvidos, o secretário de Estado [do Consumidor agora] chama-se Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor. Mas, nestas coisas, pragmaticamente, esperamos para ver.

Nos últimos meses, o Governo tem falado muito na conciliação entre vida familiar e o trabalho. É só uma conversa politicamente simpática ou há propostas concretas? Ainda esta semana se percebeu que as crianças portuguesas passam mais tempo nos infantários que as restantes crianças.
Até agora tem sido uma declaração de intenções. 

O Governo já se retratou das declarações que o ministro Matos Fernandes fez sobre a Black Friday? Já falaram consigo?
Eu não sei se o ministro Matos Fernandes fez as declarações a título individual ou a título do Governo. Se fosse o ministro da Economia ou o secretário de Estado do Comércio a fazer essas afirmações, interpretaria isso como a posição oficial do Governo. Assim, não sei. Enfim, o ministro Matos Fernandes também já fez outras declarações infelizes e exageradas em relação ao diesel e a outras questões. Penso que é uma formulação um bocado excessiva e desnecessária.

Isso não foi falado com outros membros do Governo?
Não. Se o Ministério da Economia defender isso, diga. Acabamos de negociar há três ou quatro meses e acabou de sair no dia 1 de Outubro uma nova legislação sobre saldos e promoções que está a funcionar. De facto, o consumidor português é um bocado viciado em promoções. No sector alimentar, mais de 50% das compras são feitas em promoções. Naturalmente, que a partir de certa altura não há milagres. A indústria defende-se, empolando os preços para poder absorver essas promoções. Mas, de facto, é um problema cultural. Como eu costumo dizer, há uma cultura, não sei se mediterrânica, que faz lembrar o bazar de Istambul.

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