Um “avatar cerebral” pode melhorar o sucesso das cirurgias para tratar epilepsia?

Novo método que pretende melhorar a taxa de sucesso da cirurgia de epilepsia, uma resposta para os casos que não respondem aos fármacos, recebeu aprovação para testes clínicos em 13 hospitais franceses.

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Van Wedeen/Universidade de Harvard

O plano é usar mapas personalizados do cérebro de doentes com um tipo de epilepsia que não responde ao tratamento com fármacos e, desta forma, conseguir melhorar a taxa de sucesso da cirurgia indicada para estes casos. O novo método recebeu aprovação para testes clínicos em 13 hospitais franceses, vai envolver um total de 356 doentes e o projecto tem a duração de quatro anos. O ensaio clínico, que já começou em Julho, é apoiado nos resultados obtidos no programa do Projecto do Cérebro Humano (HBP, na sigla em inglês) que junta investigadores de várias áreas no estudo do cérebro e no desenvolvimento de novas aplicações de tecnologias.

As estimativas indicam que existem mais de 50 milhões de pessoas com epilepsia no mundo e que quase um terço não responde aos tratamentos farmacológicos. Para estes casos resistentes a medicamentos, a solução pode ser uma cirurgia que serve para tentar remover a chamada “zona epileptogénica”, ou seja, a área indispensável para gerar as crises. No entanto, é preciso que, antes de qualquer intervenção, esta zona seja identificada e localizada com muita precisão no cérebro dos doentes.

Apesar dos inúmeros exames e estudos que um candidato a esta cirurgia é submetido, a taxa de sucesso desta abordagem ainda está longe de ser a ideal, ficando-se pelos 60%. Ou seja, em quase metade dos casos, as crises epilépticas continuam ou, pior do que isso, a cirurgia acaba por provocar danos colaterais que podem causar diversos tipos de prejuízo, como por exemplo défices de memória.

Viktor Jirsa, cientista do HBP, desenvolveu uma nova ferramenta que poderá ajudar a melhorar o sucesso da intervenção cirúrgica que, nota, não tem conseguido alterar de forma significativa os seus resultados nos últimos 30 anos. A nova abordagem parte da criação de modelos cerebrais personalizados de doentes e consegue simular a disseminação das actividades cerebrais durante crises epilépticas. “O método representa o primeiro exemplo de uma abordagem de modulação cerebral personalizada que entra na clínica e agora será avaliada ao longo de quatro anos”, revela o comunicado de imprensa.

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Daniel Rocha

“O ensaio clínico começou oficialmente em Julho de 2019 com a primeira inclusão de doentes em Setembro de 2019”, adianta Viktor Jirsa ao PÚBLICO. De acordo com o cientista que é director do Instituto de Neurociências da Universidade Aix-Marselha e no HBP é um dos coordenadores da área de investigação em neurociência teórica, o processo é simples e rápido. Assim, quando os doentes são considerados candidatos à cirurgia em hospitais em França, podem inscrever-se no ensaio clínico. “Todos os dados necessários são recolhidos pelos hospitais, o que leva alguns meses e faz parte da rotina clínica”, diz o investigador. Depois de as informações clínicas serem registadas numa base de dados anónima, começa a fase da elaboração de um modelo cerebral personalizado e virtual do doente, um processo que leva apenas cerca de dois dias. “São necessários mais dois dias para ajustar e analisar os parâmetros do modelo, recorrendo a técnicas de machine learning em computadores de alto desempenho”, acrescenta Viktor Jirsa.

Depois, os resultados serão “enviados de volta aos hospitais, onde as informações adicionadas se tornam parte do fluxo de trabalho clínico normal”. Ou seja, o processo de elaboração desta nova ferramenta demora, na prática, apenas uma semana. O modelo cerebral personalizado é criado a partir de dados sobre a anatomia, conectividade estrutural e dinâmica cerebral de cada doente. Após várias etapas, é transformado num modelo dinâmico que é capaz de simular a propagação de crises epilépticas. Um “avatar cerebral” personalizado para cada doente, descreve o comunicado de imprensa.

O passo de avançar (ou não) para uma cirurgia é, claro, sempre uma decisão do médico com o doente e poderá demorar o tempo que for necessário. “Neste trabalho, o progresso estará no facto de ser possível controlar melhor a cirurgia e a intervenção”, resume Viktor Jirsa.

Futuro a laser

Os cientistas esperam ainda dar outro passo para facilitar a intervenção recorrendo a laser na cirurgia e a um método menos invasivo. “A ideia é usar a cirurgia a laser e realizar apenas pequenas lesões a laser em determinados locais no cérebro para impedir a propagação da convulsão”, explica o investigador. Porém, admite, “a grande questão” está em perceber onde é que as lesões devem ser provocadas para serem eficazes e interromperem a propagação das crises, mas sem causar danos adicionais. “Actualmente, estamos a realizar análises matemáticas e simulações em computador no HBP para responder a essas perguntas. Esperamos que os primeiros resultados estejam disponíveis no Verão do próximo ano.”

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DR

Mas será que a ferramenta que já foi desenvolvida e que permite uma modulação e simulação do cérebro de cada doente poderá, desde logo, ser útil para outro tipo de problemas neurológicos? Sim, mas com muitas limitações, reponde Viktor Jirsa, acrescentando que a equipa já usou modelos personalizados para estudar novos biomarcadores no envelhecimento saudável e na doença de Alzheimer. “Os primeiros resultados são promissores para a descoberta de biomarcadores a partir de sinais de ressonâncias magnéticas funcionais.”

Atrás dos testes clínicos que agora foram iniciados na área da epilepsia estão vários anos de trabalho no HBP e com os dados fornecidos pelo simulador Virtual Brain. Além deste passo decisivo que leva a investigação e tecnologia para a prática clínica, o projecto já levou à criação de um consórcio chamado Epinov que reúne investigadores e indústria, com o plano de vir a desenvolver um protótipo de software para simulação virtual que poderá garantir esta ferramenta adicional a qualquer médico, em qualquer hospital.

Para já, o novo método será testado em quase 400 doentes, com um tipo de epilepsia resistente aos fármacos e, por isso, candidatos a cirurgia, que serão divididos em dois grupos, um dos quais vai beneficiar desta ajuda adicional e a outra metade será submetida ao processo “tradicional”. “No final de quatro anos de acompanhamento, as estatísticas vão mostrar até que ponto as previsões do modelo mudaram a prática e os resultados da cirurgia”, diz Viktor Jirsa. Se a abordagem for bem-sucedida, “este será o primeiro exemplo de medicina personalizada baseado em modulação que fará o salto da investigação para a prática clínica”.

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