Espanha: as horas perderam o seu relógio

A Espanha vai salvar-se porque se tem que salvar, dizia Unamuno. Mas depois de mais uma campanha desastrosa e da subida da extrema-direita, é urgente recuperar a capacidade de construir pontes e gerar consensos.

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LUSA/PACO CAMPOS

Nestes últimos quatro anos, em Espanha, apenas um governo chegou ao poder depois de eleições. Mariano Rajoy foi eleito em 2016 com o apoio do Ciudadanos e a abstenção de 68 deputados do Partido Socialista Obrero Español (PSOE). O segundo governo do presidente do Partido Popular (PP) resistiu até Maio de 2018, sendo destituído com a aprovação de uma moção de censura que catapultou Pedro Sánchez para a presidência do governo. O secretário-geral do PSOE, incapaz de aprovar o Orçamento de Estado, convocou novas eleições para Abril deste ano, que ganhou sem maioria absoluta. Refém de um congresso fragmentado, dos seus interesses pessoais e dos interesses do Ciudadanos e do Unidas Podemos, acabou por convocar novas eleições para o dia 10 de Novembro, que confirmaram o bloqueio do sistema político espanhol e a continuação duma crise que parece não ter fim.

As causas da instabilidade política que se perpetua em Espanha vêm de longe. Muitos dirão que foi com a Primeira República que o país se dividiu em dois. Outros apontarão a Guerra Civil como momento decisivo para explicar a incapacidade dos políticos espanhóis para se entenderem. Deixando de lado estas análises – assim como o carácter excepcional da Transição – é possível afirmar que o período político em que vivemos começou com a crise financeira de 2008. Seguir-se-lhe-ia a emergência do movimento 15-M, que abalaria os pilares da sociedade espanhola, e a criação do Unidas Podemos em 2014. Mas foi com a entrada do Ciudadanos no Congresso no ano seguinte, conseguindo 40 deputados, que foi oficialmente declarada a morte do bipartidismo. Começava assim a fragmentação imparável do sistema político espanhol, que culminou com as eleições celebradas no domingo, 10 de Novembro, que determinaram um Congresso composto por 16 partidos políticos – mais do que no Bundestag alemão, na Câmara dos Comuns britânica e noutras câmaras baixas como a holandesa e dinamarquesa.

Pedro Sánchez pode ter vencido as eleições, mas não convenceu. Parecia convicto que obteria um melhor resultado do que em Abril, atraindo os votantes de centro-esquerda, mas finalmente ficou-se pelos 120 deputados e perdeu 800 mil votos. Limitou assim as suas opções para ser investido como presidente do governo e perdeu a maioria absoluta no Senado. A irresponsabilidade de convocar eleições, antepondo os interesses próprios aos interesses de Espanha, podia ter-lhe saído mais caro. Tão caro como ao Ciudadanos, cuja intransigência e viragem à direita custaram 47 deputados.

As coisas correram melhor ao Partido Popular, apesar de ter procurado um equilíbrio impossível entre a moderação e adoptar a agenda política de um partido de extrema-direita. O PP acabou por crescer exponencialmente à custa dos erros do Ciudadanos – que se suicidou politicamente – e do PSOE – que não soube capitalizar a vitória obtida nas anteriores eleições. Mas apesar dos 89 deputados conseguidos no domingo, este supõe o segundo pior resultado do partido de Pablo Casado nos últimos 30 anos, assim como uma oportunidade perdida para apresentar uma alternativa política ao governo de Pedro Sánchez e do PSOE.

O Vox foi o grande vencedor destas eleições. Estamos a falar dum partido nacionalista, xenófobo e nativista, que fundamenta o seu discurso num modelo de estado nacionalista e confessional. Que classifica os imigrantes muçulmanos como inimigos, que se intromete na esfera das liberdades individuais sem pudor e que censura os meios de comunicação que não lhe são afins. Um partido que acredita que há uma guerra cultural entre o Ocidente e o Islão que tem que ser ganha nas ruas e nas escolas, que cresce em função do choque de nacionalismos e que é liderado por uma personagem sem o carisma de Trump ou de Salvini, mas que através do “Espanha Primeiro” estabeleceu uma ligação inequívoca com os movimentos populistas de extrema-direita que emergem um pouco por todo o mundo. Santiago Abascal gostava, tal como Marine Le Pen, de viver numa Europa sem União. Abomina, tal como Salvini, os valores da ilustração. Quer, como Trump, construir muros em vez de pontes. Foi o partido deste antigo militante do PP que, aproveitando a crise política na Catalunha, a normalização facilitada pelos partidos de direita, e a exumação de Franco, duplicou o seu número de votos, elegeu 52 deputados e se converteu na terceira força mais votada em Espanha.

As eleições celebradas no passado domingo só serviram para agravar o bloqueio político. Há pelo menos quatro anos que a lógica de maiorias absolutas passou dos partidos aos blocos, tornando praticamente impossível encontrar pontos em comum entre uns e outros. O tacticismo eleitoral e a anteposição da tribo ao interesse geral aumentaram o espaço para o radicalismo e a confrontação, reforçando aqueles partidos que até há um ano não dispunham de um único deputado. Não estamos, portanto, perante um problema de aritmética parlamentária, mas sim uma ameaça ao pleno funcionamento da democracia e à confiança dos cidadãos nas instituições.

Compete aos líderes do PSOE, do Partido Popular e do Unidas Podemos evitar que o Vox disponha de uma terceira oportunidade para chegar ao Palácio da Moncloa. Uma oportunidade para corrigir os erros cometidos durante os últimos seis meses, deixando de lado agendas partidárias e quezílias antigas e procurando um entendimento que permita começar a restaurar a confiança dos cidadãos e afastá-los de agenda racistas e extremistas. Felizmente, parece que pelo menos Pedro Sánchez e Pablo Iglesias parecem ter aprendido a lição, alcançando em 48 horas um pré-acordo para governar em coligação que não foram capazes de fechar durante cinco meses. Juntos, os dois maiores partidos à esquerda sumam 155 deputados – menos dez do que em Abril – e resta saber se conseguirão convencer outras formações – incluindo o PNV, o Más País, o Partido Regionalista de Cantábria e Teruel Existe – a apoiarem esta solução governativa, assim como persuadir pelo menos o Ciudadanos e outros partidos a absterem-se numa eventual segunda volta do debate de investidura.

O momento que se vive exige a formação quanto antes de um governo pluralista, estável e duradouro que esteja disposto a governar para todos os espanhóis. Que seja capaz de implementar políticas sociais corajosas para pôr termo às sequelas da crise financeira e que tenha a vontade política para abrir uma linha de diálogo com os líderes independentistas catalães e bloquear os avanços da extrema-direita.

Espanha precisa de um governo capaz de tomar decisões difíceis sem medo de perder votos e deputados. Um governo que não evite abordar problemas estruturais e que aproveite – chegado o momento – a oportunidade para reformar um sistema que deixou de funcionar para todos. Qualquer outra coisa que não seja a formação de um governo estável envolverá Espanha no caos e na desconfiança. Os cidadãos afastar-se-iam ainda mais da política, a sociedade civil procuraria novos interlocutores e umas novas eleições saldar-se-iam com mais uma derrota do sistema democrático – incapaz de governar-se a si mesmo – e com a mais que provável vitória do medo, da ignorância e daqueles que vivem para agitar bandeiras.

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