“Vencereis mas não convencereis“

Nos últimos anos viveram-se em Espanha tempos de radicalismo retórico e de acentuação excessiva de clivagens políticas e doutrinárias. Todos os partidos concorreram para que tal tivesse sucedido. Talvez seja a hora de recuperarem algum sentido de moderação.

“Vencereis mas não convencereis. Porque convencer significa persuadir e para persuadir necessitais de algo que vos falta nesta luta: razão e direito”. Não é certo que Miguel de Unamuno tenha proferido exactamente estas afirmações no célebre confronto com José Millán-Astray ocorrido a 12 de Outubro de 1936 na Universidade de Salamanca. Isso, porém, é de somenos importância, já que o que conta não é o absoluto respeito pela literalidade do que terá sido pronunciado, mas antes a plena apreensão do espírito e do sentido de um conjunto de frases destinadas a projectarem-se na História.

Por estes dias a Espanha regressa a um tempo e a um espaço trágicos e à contemplação de um homem superior. Fá-lo através de um filme de um realizador de origem chilena, Alejandro Amenábar, intitulado Mientras dure la guerra. O filme trata dos últimos meses da vida de Miguel de Unamuno que decorrem no contexto da Guerra Civil espanhola. O episódio acima referido foi um dos mais marcantes desse sombrio período histórico espanhol.

Unamuno era reitor da Universidade de Salamanca e presidia a um acto académico que coincidia com a celebração da Festa da Raça. O ambiente era de grande tensão. A dada altura um dos oradores, catedrático de Literatura naquela Universidade, desferiu violentos ataques contra a Catalunha e o País Basco, bem como a todos quantos não compartilhavam os propósitos do movimento subversivo fascista, apelidando-os de “anti-Espanha”.

Unamuno , perante tais palavras, ter-se-á levantado e manifestado a sua viva oposição às mesmas. Terá sido nessa altura que Millán-Astray terá pedido permissão para falar e, no meio de uma enorme confusão, terá gritado “morram os intelectuais! Viva a morte! “. Unamuno, dando provas de uma extraordinária coragem, não terá interrompido o seu discurso e terá ousado mesmo imprecar frontalmente o Chefe da Legião.

Foram-lhe atribuídas as seguintes palavras que merecem ser citadas: “Acabo de ouvir o grito de “Viva a morte! “. ( … ) O General Millán-Astray é um inválido de guerra. Podemos dizê-lo sem usar um tom mais suave. Também o foi Cervantes. Mas os extremos não se tocam nem nos servem de norma. Desgraçadamente, há hoje demasiados inválidos em Espanha e brevemente haverá ainda mais, se Deus nos não ajudar. Causa-me dor pensar que o General Millán-Astray possa ditar normas de psicologia às massas. Um inválido que careça da grandeza espiritual de Cervantes sentir-se-á reconfortado ao observar o aumento do número de mutilados à sua volta. O General Millán-Astray não é um espírito selecto: quer criar uma Espanha nova à sua própria imagem. Deseja ver uma Espanha mutilada. “Esta foi a versão que passou à História pelas mãos de Portillo Pérez, um professor de Direito amigo de Miguel de Unamuno. Os dois principais biógrafos deste último, o casal francês Jean-Claude e Colette Rabaté, admitem que possa haver alguma discrepância com a realidade mas salientam o carácter excepcional daquilo que foi proferido, já que levou ao imediato saneamento de Unamuno de todos os cargos cívicos e políticos que desempenhava. O grande intelectual espanhol, ibérico e europeu morreria poucos meses depois.

É uma Espanha de novo profundamente dividida, preparada para ir a eleições legislativas pela quarta vez em dois anos, prestes a transferir os restos mortais do velho ditador para um cemitério comum e ansiosamente à espera da publicação das sentenças a aplicar aos ex-governantes catalães, aquela que, através do cinema, recorda e celebra um dos seus espíritos maiores, Miguel de Unamuno. Ignoro se as novas gerações espanholas lêem o antigo reitor de Salamanca e se o seu notável magistério moral e intelectual ainda exerce alguma influência no país vizinho. Por isso mesmo é importante que este filme gere polémica e instigue a discussão crítica.

Olhando para a sociedade espanhola somos levados a constatar um importante paradoxo. Por um lado, foi uma das sociedades que mais se modernizou, se liberalizou e se democratizou no contexto europeu nos últimos quarenta anos; por outro lado, revela imensa dificuldade em libertar-se de sectarismos atávicos e de superar antinomias desactualizadas. Este paradoxo não aponta para a ideia de duas Espanhas, mas sim para a representação de uma Espanha ainda demasiado enredada na contemplação das suas tragédias contemporâneas. É verdade que nenhum povo consegue expurgar em absoluto a dimensão trágica do seu percurso existencial. Nem nenhum povo, nem sequer nenhum indivíduo, como nos recorda o próprio Miguel de Unamuno numa das suas obras maiores, Do Sentimento Trágico da Vida.

Dentro de pouco mais de um mês os espanhóis terão um novo parlamento. Não se auguram significativas mudanças. Muito provavelmente o PSOE ganhará sem maioria absoluta; a esquerda radical recuará um pouco; a direita, na sua diversidade, manterá mais ou menos a mesma votação. Ao fim de quatro eleições não será possível continuar a ignorar a evidência: a Espanha precisa de um novo “Pacto de Moncloa”. Há hoje quem acuse esse pacto histórico, alcançado no dealbar da democracia, de tudo e mais alguma coisa. Não creio que lhes assista qualquer tipo de razão. Esse pacto foi essencial, no seu tempo, para a consolidação do novo regime e para a aproximação do país ao projecto europeu.

Nos últimos anos viveram-se tempos de radicalismo retórico e de acentuação excessiva de clivagens políticas e doutrinárias. Todos os partidos concorreram para que tal tivesse sucedido. Talvez seja a hora de recuperarem algum sentido de moderação. A responsabilidade maior nesse esforço caberá, sem dúvida, ao PSOE, dada a enorme possibilidade de ganhar as eleições. Pedro Sanchéz já o terá percebido e assumido.

O homem que se apresentava como mais genuinamente de esquerda que os seus antecessores, o paladino de uma suposta pureza ideológica, o líder que se propunha a todo custo governar com o apoio da extrema-esquerda espanhola, deu lugar a um político de recorte centrista, aberto ao diálogo com múltiplos sectores da sociedade espanhola. Há, aliás, um momento paradigmático desta metamorfose: foi quando Sanchéz disse que não dormiria tranquilo se tivesse o Podemos a governar com ele. Creio que está tudo dito.

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