PGR e a insustentável leveza de um parecer

No momento em que o julgador, na posição de intérprete, puder dizer que o que a lei quer prever é “preto”, que lá não está escrito, e não “branco”, que lá está escrito, o Direito sucumbirá às mãos de superiores interesses obscuros e democraticamente incontroláveis, num ambiente de pura e dura “raison d´État”!

Está tudo dito e redito sobre os factos que servem de pano de fundo ao chamado “família gate, o mesmo é dizer um conjunto de membros do Governo que se vêem publicamente expostos mercê a celebração de negócios, alguns de elevadíssimo montante, entre empresas de familiares seus e o Estado.

Embora o sentimento da generalidade dos portugueses seja o de que estas contratações são ilegais e, no mínimo, eticamente reprováveis, pelo potencial de promiscuidade, favorecimento e compadrio que trazem associado, logo veio o primeiro-ministro em exercício (leia-se o ministro Santos Silva) dizer que uma interpretação literal da lei seria absurda!

E a PGR, a pedido do Governo, acaba de emitir um parecer que nenhuma ilegalidade vislumbra nesses negócios, acompanhando, portanto, o entendimento do Governo. Conclusões que parecem mais ditadas pelas circunstâncias do momento do que propriamente pela análise das concretas questões de legalidade que compete ao Conselho Consultivo da PGR.

A pólvora que subitamente a PGR acredita ter descoberto assenta numa interpretação da lei que, buscando a vontade do legislador, acolhe uma “redução teleológica”. Trocando por miúdos: a PGR vê na lei o que lá não está escrito e não quer ver o que lá está escrito! 

A lei diz que é “branco”, mas, talvez atribuindo-se ao legislador a intenção de pretender ter dito que é “preto”, a correcta interpretação seja a de lá ver escrito “preto” e não “branco”. Um verdadeiro ovo de Colombo!

Entende a PGR, e bem, que a boa interpretação não deve obedecer cegamente à letra da lei, antes deve “indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as direções possíveis”.

Só que PGR omite, em absoluto, a análise de uma regra nuclear da boa hermenêutica ou interpretação jurídica, com isso contaminando e viciando a sua linha de raciocínio e todo o parecer.

A correcta interpretação da lei, se bem que não deva cingir-se à letra da lei, impondo a tarefa de reconstituir o pensamento legislativo, não pode considerar o pensamento do legislador que não tenha na letra da lei um “mínimo de correspondência legal, ainda que imperfeitamente expresso”. Di-lo o art.º 9.º do Código Civil.

E isto constitui um verdadeiro travão, uma cláusula de salvaguarda que distingue os Estados de direito democráticos dos Estados totalitários e ditatoriais.

Permitir que uma interpretação da lei se faça sem um mínimo de correspondência com o que está escrito na lei abre as portas à arbitrariedade e à iniquidade.

No momento em que o julgador, na posição de intérprete, puder dizer que o que a lei quer prever é “preto”, que lá não está escrito, e não “branco”, que lá está escrito, o Direito sucumbirá às mãos de superiores interesses obscuros e democraticamente incontroláveis, num ambiente de pura e dura “raison d´État”!

Ora, a interpretação operada pela PGR no seu parecer não tem qualquer correspondência, sequer mínima, com a letra da lei. Aliás, a letra da lei é tão clara e inequívoca que não deixa margens para a deriva interpretativa da PGR.

E a própria PGR emaranha-se num conjunto de contradições que não podem passar em claro.

A PGR, ao tentar escrutinar o móbil do legislador da lei de 1995 que alterou a versão primitiva da lei das incompatibilidades, diz ter-se deparado com a total ausência de quaisquer esclarecimentos e com a falta de explicitação das razões em que assenta a alteração legislativa de então.

Ora, se assim foi, como poderá a PGR vir arrogar-se a pretensão de “escrutinar” um pensamento legislativo que não está minimamente esclarecido nem explicitado? Só por “adivinhação”, ou mera especulação!

E, interroga-se de seguida a PGR, se o legislador terá previsto e, tendo-o feito, se quis o resultado que recorre da lei tal como foi aprovada. Aqui, a PGR vai longe demais: numa insólita atitude paternalista, já não se basta com tentar perscrutar o pensamento legislativo, mas afoita-se mesmo a exercer censura sobre o legislador, que, no seu entender, não terá atentado e acautelado minimamente as consequências decorrentes da lei que estava a criar.

Mas onde o parecer da PGR assume dimensão de verdadeiro contorcionismo jurídico é na flagrante subversão daquela que foi a vontade do legislador, o teste do algodão de toda esta polémica.

Pondera a PGR que o PS, na discussão da alteração de 1995, apresentou uma proposta de alteração no sentido de que do texto da lei passasse a constar o seguinte segmento: “...no departamento da Administração em que aquele titular [do cargo político] exerça ou tenha exercido funções, no prazo de um ano após a cessação das respetivas funções”.

Acontece que, tal como também refere o parecer da PGR, o PSD propôs uma correcção no sentido de esse segmento ser eliminado, proposta que acabaria por ser votada por unanimidade, repita-se, por unanimidade, dos deputados.

Ora, não pode a PGR, séria e coerentemente, sustentar que o impedimento previsto na lei não abrange os contratos celebrados com toda e qualquer entidade pública, mas apenas os celebrados com entidades que estão sob algum tipo de dependência face ao titular do cargo político.

Isso não só não está na letra da lei, como o propósito do legislador foi exactamente de cariz contrário, isto é, arredar da lei essa diferenciação de tratamento.

Se a lei justifica alteração, altere-se, como aliás os deputados já se encarregaram de fazer, mas não nos atirem areia para os olhos subvertendo o regime legal em vigor!

Em suma: embora a esfera de competências do Conselho Consultivo da PGR se deva circunscrever a questões de legalidade e não a critérios de oportunidade e mérito, este parecer é filho das circunstâncias do momento: campanha eleitoral em curso e publicação de nova lei que revoga a anterior!

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