Bolsonaro: a falácia do ungido divino

Um novo Brasil, renascido, soberano e soberanista, apresentado como uma espécie de folheto de agência de viagens. Será que o Presidente do Brasil disse toda a verdade perante a Assembleia Geral das Nações Unidas?

A tarefa não era fácil. Bolsonaro sabia que a maior parte dos Estados representados na ONU olham para ele com desconfiança, apresentado como um “quase-ditador”, uma pessoa estranha, pouco fiável, o que naturalmente se teme, por se temer sempre o desconhecido.

Daí a referência a Deus logo a abrir, atribuindo a um milagre a salvação do esfaqueamento por um militante radical de esquerda e, no final, a citação de João 8, 32: “A verdade vos libertará.” Mas será que o Presidente do Brasil disse toda a verdade perante a Assembleia Geral das Nações Unidas? Por certo, alguns dos muitos dados, números e estatísticas que apresentou serão alvo de contestação, sobretudo aqueles que contendem com um quadro demasiado cor-de-rosa de conquistas em tão pouco tempo.

Uma das mentiras foi o empenhamento no acordo Mercosul/União Europeia, conhecidas que foram as reticências de Bolsonaro, empenhado na construção de uma economia nacionalista, isolacionista e proteccionista, tendo por paladino e mentor Trump, para quem não faltaram encómios, bem como para Netanyahu, tudo menos um político acima de suspeitas de corrupção e que se agarra ao poder como uma lapa, por saber que é o lugar que ocupa que ainda o mantém fora de processos judiciais. Todavia, não tenhamos ilusões: Israel é uma verdadeira democracia e a justiça pode tardar, mas espera-se que não falhe.

Um novo Brasil, renascido, soberano e soberanista, apresentado como uma espécie de folheto de agência de viagens, com convite directo à visita dos altos dignitários para verem com os seus olhos o que os media vendem por maldade. A semelhança com Trump é evidente e apenas esta frase desmente a liberdade de expressão e o não-condicionamento dos meios de comunicação social que Bolsonaro quis passar. Contra o imperialismo de Macron, nunca citado, mas omnipresente, contra o espírito colonialista, o discurso aproximou-se, neste ponto, dos inflamados apelos ao fim de um regime que menorizava povos e atribuía às nações europeias o condão de conduzirem seres humanos inferiores em direcção à luz. Com toda a razão se lutou contra o colonialismo, mas Bolsonaro enganou-se na época histórica.

É exacto que Macron foi no mínimo desajeitado, mas já percebemos que está a prazo, numa França e num mundo que nunca soube entender. É também verdade que em qualquer Estado tão rico em recursos naturais como o Brasil, os demais procurarão sempre obter dividendos, mesmo depois do ouro com que nós, Portugueses, alimentámos a corte. É exacto que qualquer Estado deve zelar pelos seus interesses e lutar contra interferências ilegítimas externas, assim como seria ingénuo pensar que algumas ONG não são um veículo político disfarçado.

Todavia, quando Bolsonaro afirma que é uma falácia dizer-se que a Amazónia não é património da Humanidade nem pulmão do mundo está a contrariar uma série de estudos científicos independentes e a dizer uma “meia-verdade”. É evidente que se trata de uma parte inalienável e soberana do Estado brasileiro que, como qualquer outra, deve ser governada pela legislação nacional. Simplesmente, é inegável o peso que a Amazónia tem para o equilíbrio ambiental do mundo e para o combate às alterações climáticas que conduzirão à extinção da espécie humana. Claro que isto significa que a impossibilidade de uso dessas terras para actividades económicas produtivas, evitando a desflorestação, exige de todas as Nações um esforço conjunto para compensar o Brasil e, sobretudo, as populações que aí vivem. Já se criou um fundo para esse efeito, mas não consta que o mesmo tenha funcionado na perfeição.

Bolsonaro quis passar a mensagem que a idade da inocência terminou, que o Brasil vai encontrar um equilíbrio entre a preservação da Amazónia e o seu desenvolvimento económico. Nada mais natural e de aplaudir. Mas à custa de quê? São só fake news que dinamitaram, ao menos para o estrangeiro, a popularidade do militar-Presidente? Pobre a explicação, redutora e nem mesmo os mais próximos colaboradores de Trump nela acreditariam.

O “dr. Sérgio Moro” é um “símbolo do meu país”, por ter combatido a corrupção sem medos. Má escolha. Moro está debaixo de fogo e os seus métodos como juiz são cada vez mais discutíveis. Tem estado apagado, a queimar em lume brando, mas Bolsonaro quis dar-lhe uma vez mais a mão, usando um discurso securitário e integrista, parecendo que o agora ministro Moro – que deseja sim ser ministro do Supremo Ttribunal Federal e que mercadejou a sua popularidade por um lugar nesse tribunal, com passagem pelo Governo, como forma de legitimação de um Presidente que polarizou e polariza o país – é a kryptonite contra todo o crime.

A ideologia de género, o ataque sem precedentes à “alma mater” que é a família, o desrespeito religioso, o ataque a missões e a minorias cristãs. Bolsonaro tinha de falar para a bancada evangélica e talvez ainda sinta a unção do bispo Edir Macedo, de quem nos lembramos a regozijar-se com notas de dólares. Triste espectáculo, fim da laicidade do Estado e a clássica forma de uma espécie de “Presidente esclarecido”, ungido por Deus – pelos interesses que invocam o Seu nome em vão –, qual líder messiânico.

É preciso que alguém explique a Bolsonaro que existem vários tipos de “socialismo” e que o democrático, como aquele que, em Portugal, é representado pelo PS, em Espanha pelo PSOE, na Alemanha pelo SPD, por exemplo, não “comem criancinhas ao pequeno-almoço” e não querem alterar-lhes as formas anatómicas ou criar grupos extremistas para dominar o mundo pela ideologia. Bolsonaro diz que quer terminar com a ideologia, mas ela deve estar no centro da política e o maior problema de hoje é o seu exercício sem ideologia, ao sabor de interesses conjunturais que aprisionam o poder político.

O leão tentou rugir alto, mas o efeito não parece ter sido o pretendido. Saudades do “leãozinho” de Caetano, em especial de “O meu coração é o sol, pai de toda cor/ Quando ele lhe doura a pele ao léu”. Por outras palavras, o Brasil de Bolsonaro pode vir a ser um grande muro com ligações especiais a outros grandes muros e onde o sol deixe de ser o “pai de toda cor” para se transformar num “sol de sistema esclarecido-por-um-ungido-divino”.

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