Ética, ciência e sociedade: um diálogo sempre escasso

Está actualmente a ser desenvolvida uma metodologia experimental (blastocyst complementation) que, através da transferência de células estaminais humanas para embriões animais pré-implantados, visa produzir tecidos e órgãos humanos no hospedeiro-animal. O enorme potencial terapêutico no domínio da medicina regenerativa e de transplantação tem entusiasmado muitos cientistas. Esta poderá ser uma oportunidade de vida para milhares de pacientes que morrem todos os anos nas listas de espera para transplante. Simultaneamente, tem-se elevado o tom das sérias preocupações suscitadas em relação à possibilidade destas células estaminais migrarem e integrarem o circuito neuronal animal vindo a contribuir significativamente para o cérebro da quimera-animal. No limite poder-se-á produzir (mesmo que incautamente) um animal com cérebro humano. Como será este ser, como se sentirá ou pensará? Qual a nossa responsabilidade perante ele? Teremos o direito de o produzir, mesmo ao abrigo das melhores intenções?

Também actualmente decorrem experiências de simulação do funcionamento cérebro humano (emulação) num suporte digital (computador), cada vez mais abrangente até se reproduzir completamente o cérebro, para permitir o estudo de doenças degenerativas. Seria assim possível não apenas investigar mais facilmente o processo de desenvolvimento destas doenças, mas também testar livremente novas e ousadas terapêuticas. Estando a incidência de doenças degenerativas a aumentar, ao mesmo tempo que aumenta também a expectativa média de vida, todo o progresso nesta área seria muito benéfico para muitas pessoas. E, todavia, os cientistas reconhecem que esta simulação de cérebro humano, a ser completa e perfeita, produziria um cérebro em tudo idêntico ao humano, isto é, com idêntica capacidade de percepção e de sensação, nomeadamente à dor e à vivência de emoções. Manter-se-ia então como simples material de experimentação? Ou receberia um diferente estatuto ontológico, moral, legal? Estamos a assumir as nossas responsabilidades perante as consequências futuras das nossas acções presentes?

No domínio das biotecnologias, como no das tecnologias digitais, estas são janelas sobre o presente, pelas quais alguns de nós espreitamos o futuro, mas que permanecem cerradas para a maioria. E, todavia, o futuro que se vai traçando à (janela e) porta fechada é demasiado impactante nas nossas vidas para que se desenrole sem que dele saibamos, sem que dele participemos.

Toda a nossa vida – individual e colectiva – está já hoje formatada pelos caminhos da evolução científico-tecnológica das últimas largas décadas.

Tomemos o exemplo de nascer e morrer, as realidades mais obviamente naturais e universais, mas hoje condicionadas pelo progresso das biotecnologias. Não me refiro apenas à assistência clínica nos processos de princípio e fim de vida, promovendo a saúde no primeiro e a serenidade psicofísica no segundo. Sublinho antes a capacidade de gerar vida no contexto de infertilidade, através da procriação medicamente assistida, ou de suspender a morte quando a capacidade de sobreviver se esgotou, através de meios de suporte vital. Destaco ainda a capacidade técnica de gerar uma criança com uma tripla paternidade (ADN de três progenitores) ou de escolher características da criança no processo de geração através da edição genética; ou a capacidade técnica de adiar continuamente a morte através da regeneração biológica, com a biofabricação de células, tecidos e órgãos, e particularmente da terapia celular aplicada ao envelhecimento, com a administração regular de células estaminais.

E se é verdade que os exemplos dos impactos das biotecnologias nos parecem mais próximos, é talvez apenas porque não nos apercebemos do modo como as tecnologias digitais dominam já a nossa existência pessoal e social. Mas também aqui podemos recorrer a exemplos do nosso quotidiano como é o acordar com o despertador do telemóvel, ingressar com o passe no transporte público, picar o ponto no trabalho, pagar o almoço com cartão de crédito…

A nossa pegada digital é tão facilmente rastreável como verdadeiramente indelével. A noção de privacidade ameaça converter-se numa lembrança, num mito. Afinal, todas as minhas compras no supermercado consubstanciam o meu perfil digital que desconheço, mas que me torna destinatária de uma série de publicidade fielmente dirigida para os gostos que tenho manifestado e que se tornará cada vez mais difícil diversificar. O conforto do mundo na ponta dos dedos tornou-nos menos livres, porque as opções que se nos deparam são cada vez mais restritas; tornou-nos menos tolerantes, porque só nos conectamos ao que reflecte o nosso modo de pensar e ser; tornou-nos menos sociáveis porque, apesar de comunicarmos com pessoas de todo o mundo, a relação é cada vez mais mediatizada pelo dispositivo digital. Não comunicou já por SMS, por WhatsApp com quem está à sua vista e sem o olhar nos olhos?

Estes progressos científico-tecnológicos suscitam tanto o entusiasmo como o medo, sentimentos contraditórios que acompanham a relação do cidadão comum com estes novos horizontes: uns, atraídos pelo novo, atiram-se vertiginosamente para o inédito querendo sempre mais; outros, receosos pelo que não conhecem, paralisam perante a inovação, rejeitando indiscriminadamente tudo o que é novo.

Não é esta a sociedade que queremos. Não é desta sociedade que precisamos para garantir que o desenvolvimento científico-tecnológico prossegue, na fidelidade ao humano como seu fim último incondicional, respeitando a sua dignidade pessoal e promovendo a justiça social. Eis o que só é possível construir no âmbito de um diálogo entre uma Ciência, que comunique, uma Sociedade, que participe, e uma Ética, que relacione.

Foi como contributo para este desiderato que se se projectou a obra, lançada este Verão, sobre Ética, Ciência e Sociedade (Ethics, Science, and Society, com a chancela da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Nesta se destacam alguns dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos de ponta – numa dimensão informativa tão rigorosa e objectiva quanto clara e acessível –, os seus mais fortes impactos nas sociedades contemporâneas – numa dimensão formativa e responsabilizadora de todos os intervenientes, desde os cientistas ao cidadão comum, passando pelos políticos e entidades financiadoras – e os requisitos éticos fundamentais para garantir que o conhecimento científico e a inovação tecnológica contribuem efectivamente para uma humanidade mais inclusiva (solidária) e igualitária (fraterna).

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