Lluis Montoliu: “É o início de um caminho perigoso para a eugenia”

Doutorado em genética molecular desde 1990, Lluis Montoliu é investigador do Centro Nacional para a Biotecnologia espanhol (em Madrid), onde tem sido pioneiro no uso (em animais) da técnica de “corte e cola” do ADN chamada CRISPR-Cas9 para compreender melhor o genoma. Fala ao PÚBLICO sobre a experiência de edição genética em bebés chineses.

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Lluis Montoliu Inés Poveda

Vem ao Porto esta sexta-feira para participar no seminário “O que é a natureza humana? – A ciência em diálogo com a filosofia”, organizado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e que decorre no Salão Nobre do Centro de Cultura e Congressos da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos. O investigador barcelonês Lluis Montoliu vem falar sobre intervenções no genoma, o que não podia estar mais na ordem do dia com o anúncio na segunda-feira de um cientista chinês que diz ter alterado o ADN de dois bebés, que entretanto já nasceram, usando a técnica de edição do genoma CRISPR-Cas9 (inventada em 2012).

Lluis Montoliu, presidente fundador da ARRIGE – Associação para a Investigação Responsável e Inovação na Edição do Genoma, criada este ano, considera que, a ter existido tal experiência em seres humanos, ela é “absurda e altamente irresponsável” e que está “horrorizado”.

Se o cientista chinês He Jiankui fez realmente experiências de edição do genoma humano para gerar bebés na China, que limites éticos foram ultrapassados?

Na minha opinião, ultrapassaram-se dois limites éticos nesta experiência, partindo do pressuposto de que ela aconteceu realmente. Já houve antes outros embriões humanos que foram editados geneticamente, mas esta é a primeira vez (que saibamos) que foram implantados embriões em mulheres e se desenvolveram até ao fim da gravidez, resultando no nascimento de bebés geneticamente editados, duas gémeas e mais uma criança que nascerá em breve, segundo as afirmações do cientista. Até ao momento, não estão disponíveis mais provas de que esta experiência ocorreu.

Segundo, será a primeira vez que ferramentas de edição do genoma são aplicadas in vivo em seres humanos não para fins terapêuticos – que a maioria dos cientistas é potencialmente favorável e a sociedade também –, mas para melhorar, para aperfeiçoar, características dos embriões que não tinham nenhum problema e não precisavam de nenhuma edição do genoma. Neste caso, ele declara que a sua intenção era inactivar o gene CCR5 que codifica a porta de entrada que o vírus da sida usa para infectar os linfócitos, tornando assim estas meninas praticamente resistentes à infecção pelo vírus da sida.

Estas experiências (se aconteceram) são um exemplo claro de eugenia? Os grandes riscos e receios da edição do genoma humano são de facto o reaparecimento da eugenia, depois do que se passou [nas experiências nazis em seres humanos] na II Guerra Mundial?

Na minha opinião, sim. Estamos a seleccionar características e a aplicar métodos para obter embriões e, subsequentemente, seres humanos com uma característica específica que foi escolhida. Podemos discutir separadamente os benefícios ou a utilidade dessa característica, mas, falando formalmente, este é o início de um caminho perigoso para a eugenia. Depois de se ter concordado em afinar esta característica, por que não reparar outra característica e outra e outra…?

Que sanções podem vir a ser aplicadas a He Jiankui, se fez as experiências que diz ter feito?

Aparentemente, fez estas experiências sem o conhecimento, o consentimento e as autorizações necessárias da sua instituição e do hospital associado, que estão a demarcar-se deste investigador neste momento. Vão investigar o caso e poderão vir a processá-lo. É espantoso como é que chegou tão longe sem que nenhuma autoridade ou instituição reparasse e sem que alguém parasse esta experiência absurda e altamente irresponsável.
 

Depois de He Jiankui ter falado [esta quarta-feira] na Segunda Cimeira Internacional sobre Edição do Genoma Humano [em Hong Kong], ficou mais convencido de que fez essas experiências? Que provas é que ele apresentou – ou não apresentou – aos seus colegas cientistas?

Ainda não vimos os dados a sério nem ele disponibilizou o seu manuscrito [de um artigo científico] à comunidade científica. Afirma que vai publicar esse artigo em breve. Nessa altura, poderemos avaliar em termos reais o que realmente fez. A partir dos slides e do que apresentou na cimeira, ainda há muitas incógnitas e muitas questões a que não respondeu. Por isso, estou tão convencido como estava na segunda-feira, quando vi os vídeos dele no YouTube. Esta é uma experiência tecnicamente possível mas ainda difícil. Os números apresentados não encaixam na minha compreensão sobre a técnica. Ou ele não nos está a contar a história toda ou teve imensa sorte.

Quais são as suas impressões sobre os vídeos onde o cientista chinês fala da edição do genoma de bebés?

Estou horrorizado. Ele subestima as consequências negativas ainda associadas à edição do genoma, que nós não conseguimos controlar. É por isso que estas ferramentas são extraordinárias no contexto académico, mas ainda não são suficientemente seguras para um uso clínico. É por isso que é muito irresponsável e imprudente ter permitido que duas crianças nascessem com a incerteza considerável que está associada a esta técnica. Esta experiência nunca devia ter acontecido.
 

Que riscos enfrentam no futuro estes bebés geneticamente editados?

Muitos riscos. Estas meninas têm de ser monitorizadas ao longo de toda a vida, bem como os seus filhos e os seus netos. Muito provavelmente, são um mosaico, o que significa que as suas células não são geneticamente idênticas e que algumas podem ter mutações indesejáveis que podem afectar qualquer órgão ao longo das suas vidas. Claro que inactivar o gene CCR5 per se também pode ter consequências inesperadas.

Considera urgente a criação de regulamentações internacionais sobre a edição do genoma humano?

As regulamentações são uma necessidade. Esta experiência lamentável ilustra por que é urgente estabelecer algum tipo mínimo de regras internacionais para regular o que pode e o que não pode ser feito. Creio que as Nações Unidas são o fórum mais apropriado para promover esta regulamentação. Na ARRIGE – Associação para a Investigação Responsável e Inovação na Edição do Genoma, que lançámos na Europa, estamos empenhados em envolver nesta discussão todas as partes interessadas para que essa discussão venha a cristalizar-se em regulamentações reais aplicáveis a todos os países.

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