Conflitos sociais e a responsabilidade pública

Agora, os protagonistas foram os motoristas para o transporte de matérias perigosas e mercadorias pesadas, ontem, foram os enfermeiros e amanhã... quem será?

O apego à liberdade, a igualdade de oportunidades, meritocracia e justiça – no sentido britânico de fairness - são valores irrecusáveis que devem pautar a política e a acção individual e colectiva. Foram farol para compreender os fundamentos desta saga que marcou a última semana deste Agosto que se esperava fosse de tranquilidade e recuperação de energias e que agora chegou a epílogo. Encontrei inspiração em textos excelentes publicados neste mesmo jornal, nos quais diferenças ideológicas foram menorizadas perante a necessidade de defesa da Verdade e Responsabilidade, provavelmente a missão dos intelectuais públicos, tradução literal da designação inglesa public intelectuals, ainda mais importante quando os políticos hesitaram e os cidadãos pareciam adormecidos na miragem do seu conforto...

Tempo mediático para as diferentes narrativas talvez prisioneiras do presumível impacto nas sondagens de opinião, mas oportunidade para alguma reflexão.

Quais as questões essenciais para compreender o conflito [NR: a greve dos motoristas de materiais perigosos], a sua resolução, a capitulação das forças sindicais e que pistas para uma solução duradoura?

  1. Justiça salarial e fiscal: o espectador atento percebeu que a estrutura ​salarial dos motoristas assentava num equívoco fiscal. Às empresas poderá ter permitido poupança na contribuição para a Segurança Social, aos empregados terá proporcionado o conforto imediato de mais uns euros no fim do mês em detrimento da previdência e segurança futuras, deles e das famílias. O seu salário-base, de facto, não era nada concordante com a dureza e exigência das suas tarefas e por isso deverá ser alterado sem subterfúgios para a Segurança Social.
  2. Requisição Civil? Peça fundamental da intervenção de qualquer governo que se pretendesse responsável num conflito com esta dimensão: risco da crise energética e paralisia da actividade económica e da capacitação dos serviços de emergência, hospitais, protecção civil, aeroportos. A esmagadora maioria dos cidadãos tê-la-á compreendido. Mas, no exercício da autoridade, não se dispensa o respeito pela equidade e fairness. Confesso a minha perplexidade. O que estava em jogo era assegurar o fluxo de combustível indispensável à vida tão normal quanto possível do Estado e da Sociedade. Distribuir combustível era a missão da Antram, contratada para o efeito pelas empresas petrolíferas; para a sua prossecução eram necessários os seus camiões-cisterna e os seus motoristas. Os camiões eram indispensáveis ou não ao cumprimento da tarefa? Não existiam veículos militares ou semelhantes de propriedade pública que pudessem ter sido mobilizados, como se verificou. Então porque não foram os camiões da Antram objecto de requisição civil? Motoristas sem camiões ou vice-versa, parece-me redutor!  Sendo um conflito entre privados não deviam equidade e isenção prevalecer no relacionamento com as partes em conflito? E daí a minha dúvida: porque razão o Governo não aplicou a mesma figura legal da requisição civil aos dois componentes essenciais ao cumprimento da missão de serviço público? Juridicamente nada o impediria, segundo me transmitiu ilustre jurista! Os camiões eram um bem material indispensável ao cumprimento do serviço público, como os motoristas eram um requisito essencial ao mesmo desideratum! Ou será que foi, e se esqueceram de nos informar sobre isso, nos múltiplos directos e intervenções das mais variadas personalidades? O recurso às Forças Armadas e de Segurança para utilização dos camiões-cisterna foi uma necessidade. Certamente haverá pagamento pelos serviços prestados e o Primeiro-Ministro tocou no problema na sua intervenção de ontem, após o anúncio do fim da greve.

Quem sabe, se tivesse prevalecido desde o início postura de equidade e fairness não teria sido possível abreviar a escalada do conflito?

  1. Responsabilidade pública: é um pilar da sociedade livre e democrática. O direito à greve é fundamental e base de uma sociedade democrática e livre e na defesa da justiça social. O seu contraponto, quando estão em jogo tarefas essenciais à vida colectiva, pode ser a requisição civil, para obstar a males maiores. Por isso, a contenção nas narrativas que se adivinham nos próximos tempos, é obrigação da Política e fundamental na intervenção dos nossos public intelectuals que existem, têm qualidade e mérito independentemente da ideologia – excluo obviamente os que cumprem missão partidária que são naturalmente importantes para nos darem conhecimento do rationale das posições respectivas dos seus partidos.

Porque Estado e Cidadania não se esgotam no Governo e muito menos nos partidos em período pré-eleitoral!

Por todas estas razões é tão importante corrigir situações como a que este conflito evidenciou, através duma política consequente e actuação preventiva sobre situações comparáveis que existam no nosso tecido social e económico. Reconhecer os problemas e antecipar soluções possíveis são, também, a marca do Bom Governo da Cidade. Agora, os protagonistas foram os motoristas para o transporte de matérias perigosas e mercadorias pesadas, ontem, foram os enfermeiros e amanhã... quem será? Aguentarão o País e os Cidadãos?

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