O caso do Martim Moniz

Porque os nossos olhos estão postos no Martim Moniz, não é permitido que dele se faça aquilo que se quiser em nome do progresso, do lucro, de uma forma de racionalização mais ou menos agressiva ou de qualquer modo fantasioso e oportunista (pretensamente prestigiante) de fazer cidade que nada tem a ver com as memórias do local ou com quem o habita.

A questão do Martim Moniz não se resolve considerando apenas a praça do Martim Moniz. Aliás, as problemáticas implicadas neste caso devem ser apreciadas numa escala diferente daquela que um espaço transformado artificialmente em praça, por decisão política, supostamente exigiria. A actual praça do Martim Moniz surge com a supressão de uma parte do tecido urbano que dava sentido a esta zona da cidade no seu traçado medieval. Há, ainda no séc. XX, pelo menos dois momentos assinaláveis de intervenção urbanística neste espaço – as demolições das décadas de 50/60 e as construções da década de 80. Assim, um duplo ou triplo critério que corresponde às sucessivas fases de intervenção de que o espaço do Martin Moniz foi alvo veio impor a coexistência de visões diferentes de cidade.

O que ali foi feito, sobretudo nas últimas décadas, não tem ajudado na qualificação de um espaço que acabou por tornar-se paradigmático porque adquiriu aquelas características. A maneira como se concebeu e se tem explorado a presença dos edifícios que cingem a praça é simplista, confusa, desapropriada e torna muito difícil uma “resolução” satisfatória desta espécie de chaga aberta na cidade. É que, de facto, aqui não houve a manifestação daquele talento visionário, como no caso da Baixa Pombalina, de planeadores e urbanistas que conseguiram resolver contradições no modo de se fazer cidade, articulando, com coerência, o testemunho de diferentes épocas. Mas também é verdade que o nosso hábito acaba por re-significar os lugares, emprestando-lhes valores que têm a ver com a memória e experiência pessoais do seu uso, conciliando, por vezes, contradições quase irresolúveis. Deste modo, habituamo-nos ao “novo”, ao “velho”, ao “exótico”, ao “absurdo” e até ao totalmente inadequado porque associamos memórias gratas à sua vivência.

Com efeito, por detrás daquilo que se tem proposto ultimamente, desde os esquemas mais abstractos até às propostas mais concretas e impressionantemente visuais, parece haver uma assunção de conceitos de cidade que se atropelam uns aos outros e se esquecem da realidade sociológica de cada bairro circundante, da memória dos lugares, das culturas locais e das exigências ambientais em relação, por exemplo, a equipamentos colectivos que a legislação futura, norteada pelos princípios da sustentabilidade, certamente não tolerará. Queremos acreditar obviamente que Lisboa, como cidade, terá futuro. Torna-se, pois, legítimo atribuir à tensão entre os espaços público e privado um papel determinante na definição do perfil dos seus utilizadores e habitantes. Aliás, a cidade, como macro-objecto, determina sempre a condição de quem a usa e habita: ricos ou pobres respiramos o mesmo ar; a pé, de bicicleta ou de carro deslocamo-nos todos nas ruas da cidade.

As dinâmicas que se geram numa cidade como Lisboa, pela introdução de novos espaços públicos ou privados, que vão alterar os equilíbrios entre os vários sistemas de suporte que, por sua vez, viabilizam a vida da cidade, são complexas: elas obrigam ao desenvolvimento de análises multidisciplinares cuja síntese permite avaliar a qualidade urbanística dos diversos tipos de intervenção. Já sabemos que cada ponto de vista, pela natureza das disciplinas de que se socorre, acaba por tentar impor os seus interesses ou uma metodologia que lhe é própria. E, assim, é necessário, com alguma preocupação de equilíbrio, evitar a sujeição de um diagnóstico aos interesses políticos, económicos, filosóficos ou até religiosos, das forças que sempre se manifestam nos processos ditos “técnicos” de qualificação dos espaços, sobretudo no caso dos espaços públicos.

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Todos sabemos que a urbanidade é um processo negociado. Em que é que o planeador/urbanista está a contribuir, antes de propor soluções, para o diálogo entre os diferentes agentes de mudança ou de conservação, em cada caso específico de intervenção na cidade? Não é verdade que, a partir do Iluminismo, esta responsabilidade colectiva deixa de existir com a emergência de um “despotismo esclarecido”? De resto, não terá sido sempre aplicada esta lógica, com raríssimas excepções, na evolução de Lisboa, a partir do século XVIII?

Este “esclarecimento” (tantas vezes “despótico”) dos interventores (sobretudo, os políticos), mesmo com boas intenções, tem destruído sistematicamente aquilo a que poderemos chamar as “culturas da cidade”. Em consequência de tudo isso, qualquer discussão projectual sobre a praça do Martim Moniz deverá envolver a população, isto é, as comunidades e os grupos de interesses que a vão usar. Mas, por aqui, só se obterão bons resultados com a aplicação de uma ideia de cidade que respeite a sensibilidade e os interesses dos actores locais e das organizações da sociedade civil. Perante os novos desafios da necessidade de tornar as cidades sustentáveis, no sentido pleno do termo (alterações climáticas, poluição, ruído, dispêndio de recursos, mobilidade, etc.), estaremos nós dispostos a empreender tal tarefa (com a consciência de que isso dificultará os nossos negócios imediatamente lucrativos)? Terão os decisores políticos competência para tal, já que não há ainda na legislação em vigor uma definição científica e cultural realmente aplicável de “sustentabilidade”?

Nas últimas décadas, muitos pontos de vista que a Arquitectura ignorava – o da Antropologia, o da Biologia, o da Ecologia, o da Psicologia ou até o da Linguística, por exemplo – foram implicados no raciocínio arquitectónico-urbanístico, o que veio tornar as apreciações ainda mais complexas e, lamentavelmente, mais oportunistas. Por um lado, sentimo-nos todos autorizados a falar da cidade, o que é bom pois há toda uma actividade de vigilância e controlo que, por vezes, tem tirado da mão de uma “elite” política decisões de fundo, fazendo, por exemplo, reverter opções meramente “especulativas”. Por outro lado, a falta de preparação dos críticos que, exactamente, só são capazes de avaliar um desempenho projectual claro na perspectiva daquilo para o que ganharam uma certa competência, como, por exemplo, a apreciação da tecnicidade ou da benevolência de um desenho (porque é actual, estando na moda, porque é cosmopolita e cheira a “metrópole” bem sucedida ou merece conotações plásticas “ousadas” e “originais” muitas vezes, reinterpretando “livremente” a tradição para, afinal, suprimir em definitivo as suas marcas) transforma os júris dos concursos em instrumentos de avaliação ainda mais permissivos a soluções destrutivas do que o habitual aproveitamento “espontâneo” do espaço público por parte dos habitantes. É que, fora das abstracções “técnicas” e “científicas” das disciplinas, há uma lógica de sobrevivência criada pelas necessidades dos moradores, dando sentido a uma vivência (oportuna) dos espaços.

Acresce que a própria ideia de “integração” das diferentes perspectivas e conceitos da realidade urbana não é mais do que o desejo projectado em programas de uso que ignoram, de facto, a complexidade da vida real impondo uma racionalização forçada (e artificial) e promovendo uma espécie de iliteracia urbana que inaugurou, depois da Segunda Grande Guerra, uma nova forma de “nomadismo” a que os habitantes das grandes cidades já não conseguiram mais escapar. Os bairros antigos que foram poupados acabaram por assumir-se como guardiões do que resta dessas “culturas da cidade”. Este paradoxo constitui, porventura, a maior tragédia da evolução das cidades, sobretudo a partir do século XIX, onde tudo isto já se desenhava.

De resto, o perfil dos júris de que falávamos revela claramente as pretensões de quem os nomeia. Trata-se sempre de “especialistas” ou de personalidades cuja mentalidade, tantas vezes elitista (a partir de um conceito de “elite” que, assim se auto-considerando, nos quer assegurar que sabe tudo), condiciona as suas escolhas a autores de nomeada ou totalmente desconhecidos, por exotismo e bizarria (como se o gosto da moda fosse um critério legítimo), ignorando a adequação das propostas às necessidades ou a legitimidade social das soluções. Não há cultura urbana sem lugares. A consciência do que poderemos chamar a nossa “incultura urbana” deveria impor-nos, em tais situações, júris onde estão representados todos os interessados neste tipo de processos, desde os decisores políticos, passando pelos técnicos, até aos próprios habitantes.

Lisboa vai ser Capital Verde Europeia 2020. A verdadeira assunção deste compromisso paralisaria a maior parte dos exercícios urbanos de estratégia fundamentalmente economicista que promovem o aproveitamento especulativo, comercial ou industrial, do espaço público, entendendo-se especulação como o lucro imediato de um investimento privado sem mais-valia pública, a não ser uma espécie de entretenimento e consumo baratos de bens e serviços. Assim, porque os nossos olhos estão postos no Martim Moniz, não é permitido que dele se faça aquilo que se quiser em nome do progresso, do lucro, de uma forma de racionalização mais ou menos agressiva ou de qualquer modo fantasioso e oportunista (pretensamente prestigiante) de fazer cidade que nada tem a ver com as memórias do local ou com quem o habita. O Martim Moniz tem história; o Martim Moniz existe e, se soubermos manter firme a nossa atitude de resistência, o Martim Moniz terá um futuro.

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