Posso não estar boa da cabeça

Este domingo resolvi chatear a Vanessa para que lesse o Herzog. É um livro recomendável para quem não está bom da cabeça e, aparentemente, eu acho que ela não está. Não é que algum dia tenha sido muito boa – isto não é assim tão novo.

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VASCO GARGALO
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“Posso não estar bom da cabeça, mas tudo me parece claro, pensou Moses Herzog. Algumas pessoas julgavam-no louco e durante um certo tempo ele próprio duvidou da sua integridade.” Este é um dos meus começos de livros preferidos e Herzog, de Saul Bellow, uma das coisas que mais gostei de ler. Passo a vida a chagar os meus amigos para que leiam o Herzog, a história do professor à beira da insanidade que desata a escrever cartas a toda a gente e que, segundo algumas “fontes”, é o livro mais autobiográfico de Bellow – embora aquilo do Bellow pôr quase todas as personagens principais a serem judeus nascidos em Chicago, como ele, seja interessante nesse capítulo.

Este domingo resolvi chatear a Vanessa para que lesse o Herzog. É um livro recomendável para quem não está bom da cabeça e, aparentemente, eu acho que ela não está. Não é que algum dia tenha sido muito boa – isto não é assim tão novo.

– Vanessa, olha este arranque. Isto é quase tão bom como o da Conversa na Catedral do Vargas Llosa (na verdade é o da Catedral o meu início de livro preferido).

Ela não se encontrava absolutamente eufórica e parecia não estar com muita paciência para a minha conversa.

Mas eu resolvi continuar a ler alto o arranque do Herzog.

– Não sei se me apetece ouvir.

– Vá, isto é incrível, vais adorar. “Posso não estar bom da cabeça, mas tudo me parece claro, pensou Moses Herzog. (…) Um feitiço o envolvera e desatara a escrever cartas a toda a gente. Estava tão excitado com estas cartas que desde o fim de Junho andava de um lado para o outro com uma mala cheia de papéis. Levou essa mala de Nova Iorque para Martha’s Vineyard , mas regressou de Vineyard imediatamente; dois dias mais tarde voou para Chicago e de Chicago dirigiu-se para uma aldeia na zona oriental de Massachusetts. Escondido no campo escreveu incessante, fanaticamente, para os jornais, aos homens públicos, a amigos e familiares e até aos mortos, aos seus próprios mortos obscuros e finalmente aos mortos famosos.”

– Isto não é uma maravilha?, perguntei eu que às vezes me torno um bocado seca a querer que os meus amigos adorem coisas que eu adoro.

– Sim, é porreiro.

A Vanessa não estava boa da cabeça. Faltava apurar se tudo lhe parecia claro, como ao outro.

– O que é que tens?

– Não tenho nada, estou óptima. Fantástica mesmo.

– Ok, não me parecia.

– Avalias tudo mal.

– Então, já te reinscreveste no Tinder?

– Não. O que verdadeiramente agora me apetecia era escrever umas cartas. Há aí umas pessoas a quem tenho algumas coisas para dizer. Esse gajo desse livro que me estiveste a ler deu-me umas ideias. Não sei por onde começar, talvez pelos meus conhecidos obscuros.

Teme-se o pior. Tudo lhe parece claro. 

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