Numa casa portuguesa, cabe sempre mais um turista à mesa, com certeza

Na plataforma Eat at a local’s, é possível abrir a porta de casa e partilhar uma refeição tipicamente portuguesa com turistas.

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Joana Glória era ainda bebé de colo naquela fotografia, deitada nos braços de uma turista. “Foram as nossas primeiras hóspedes. Luso-descendentes do Canadá”, recorda a mãe, Corinne Ferreira. Há muitos anos que a avó de Joana aluga quartos a turistas em Lagos, no Algarve. E, durante aqueles tempos, também Corinne tinha a sala transformada em quarto de hóspedes. Receber turistas em casa sempre fez parte do quotidiano da família. Até há bem pouco tempo, também Joana geria duas guesthouses na cidade algarvia. Tanto ali como na casa da avó ou na sala da mãe, não raras vezes, o convívio acabava à mesa, família e turistas em redor dos petiscos portugueses. “Se havia hóspedes no Natal, por exemplo, convidávamos sempre para virem comer connosco”, conta Corinne.

Agora, Joana Glória quer pôr outros portugueses a fazerem o mesmo, no Natal ou em qualquer outra altura do ano: quer desafiá-los a cozinhar pratos tipicamente portugueses para dar a provar a quem visita o país, partilhando a mesa de casa com os turistas. O Eat at a Local's funciona como um Airbnb para refeições: quem estiver interessado em cozinhar, inscreve-se como anfitrião na plataforma, desenha um menu, acrescenta fotografias, uma breve descrição e o preço e aponta as datas disponíveis; quem quiser aparecer para comer, cria um perfil no site, escolhe a experiência que prefere, tendo em conta a data e a cidade, e faz a reserva. A plataforma fica com 20% do valor de cada reserva efectuada.

Existe apenas uma regra: à mesa tem de chegar comida portuguesa. Pode ter o toque personalizado do anfitrião, ser uma receita especial de família ou uma reinterpretação moderna, mas “a essência portuguesa tem de estar lá”. “Queremos ser fiéis à nossa identidade”, resume Joana. É esse o factor distintivo em relação a outras plataformas internacionais semelhantes, defendem. “Queremos afirmar-nos como embaixadoras da cultura portuguesa, tanto na comida como na arte de bem receber”, acrescenta Maria João Proença, responsável pelos conteúdos digitais do Eat at a local's e autora do blogue viajante Joland.

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Os negócios, argumenta-se em redor de uma travessa de berbigões, “fazem-se de uma forma muito mais fácil quando há partilha”. Quando as “ideias fluem” entre pares e se criam sinergias. Quem o afirma é Célia Real, co-fundadora do Mar d'Estórias, uma loja-restaurante localizada no centro de Lagos. Foi dela que partiu a ideia que daria origem ao Eat at a local's. “Foi muito informal e natural, numa conversa entre amigas. A Célia estava a dizer que queria ter uma casa onde pudesse receber pessoas para cozinhar. E eu fui para casa, adormeci, às cinco da manhã abri o olho e pensei na plataforma”, recorda Joana.

Para Célia, “não há forma melhor do que a comida para aproximar as pessoas”. Principalmente quando se viaja ao estrangeiro. “Quando vou a um sítio, sempre que possível gosto de experimentar o que realmente é daquele país. E, hoje em dia, isso é cada vez mais difícil, sobretudo nos circuitos normais turísticos. Vemos tudo menos a essência do país.” Abrir a porta de casa e brindar quem visita com comida caseira pode ser uma alternativa “fantástica”.

No último ano, o conceito do Eat at a local's esteve a ser afinado e o site desenvolvido. Em Março, foi lançado ao público. A vida dá voltas e Célia ainda não pôde tornar-se anfitriã, como naquele plano inicial, quando o projecto ainda estava longe de se multiplicar pelas cozinhas de portugueses em todo o país. Mas parte do menu já está pensado. “Vou fazer lapas, que a minha filha apanha em Sagres, no forno, com alho e limão. As pessoas identificam as lapas [como uma coisa só] das ilhas, mas as de Sagres são óptimas.”

Corinne sabe que vai variar o menu. “Não gosto da rotina”, atira, de sorriso aberto, num português que não perde as notas francesas, apesar de viver cá há 43 anos. Corinne foi uma das primeiras pessoas a inscrever-se como anfitriã na plataforma e é na cozinha da mãe de Joana que o grupo se reúne para o almoço: a avó Ângela, Corinne, Joana, Maria João e Célia. Depois dos berbigões, do queijo fresco de cabra e do paté caseiro, chegam à mesa a caldeirada de peixe e, para sobremesa, bolo de laranja com amêndoas e whisky. Tudo preparado por Corinne. Para as próximas semanas, as propostas passam por arroz de camarão e mexilhão, carne de porco à moda do Algarve ou bacalhau à Brás (mais entradas, sobremesas e bebidas; 18€ cada).

Isto na “chez Corinne”, em Lagos, como anuncia na plataforma. Já em Vila Nova de Mil Fontes, por exemplo, Pedro Lebre propõe-se cozinhar cataplana, com a possibilidade de adicionar um passeio pela vila alentejana (25€); Helena Cardoso promete bacalhau à minhota ou arroz de pato à antiga em Guimarães (40€); e Maria Antónia Peças quer guiar os turistas pelo mercado de Arroios, em Lisboa, para comprar os ingredientes do almoço – na ementa: caldeirada à fragateira ou carne de alguidar com migas (75€).

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Cada anfitrião escolhe o quer cozinhar, define se é almoço, jantar ou brunch, por exemplo, e se quer acrescentar algo à experiência: um passeio, uma ida ao mercado, um workshop. “Aquilo que nós fazemos com a nossa família e amigos é o que gostávamos que os anfitriões fizessem com os turistas”, resume Joana. “É muito mais do que comida.” É abrir as portas de casa, cozinhar, sentar à mesa e partilhar a refeição, conhecer pessoas novas, trocar histórias e experiências. “A refeição é a desculpa, mas acredito que o resto tem muito mais valor”, defende.

Para já, existem “cerca de 40 pessoas” inscritas na plataforma, embora “nem todas tenham criado experiências ainda”. O objectivo a curto prazo, conta, é “continuar numa estratégia de angariação de anfitriões” e tentar cobrir todo o país, continente e ilhas. Depois, internacionalizar. “Inicialmente pensava, por exemplo, em ir para Espanha e cozinhar comida espanhola, mas agora estou a pensar levar Portugal para o mundo”, revela a empresária. “Recebi a chamada de uma portuguesa a viver em Londres que queria cozinhar comida portuguesa em Inglaterra. Não dava, porque nós ainda só estamos em Portugal, mas ficou-me a moer na cabeça. Why not?”

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