Se a Etiópia implodir os estilhaços atingirão o Corno de África

A “grave crise política e de segurança” que o país atravessa ficou à mostra nos assassinatos de sábado. Teme-se que se a crise se transformar em guerra civil, esta destabilize toda a região.

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Uma mulher chora durante o funeral do general Seare Mekonnen BAZ RATNER/Reuters

Centenas de militares juntaram-se esta terça-feira em Adis Abeba para o funeral do chefe do Exército, morto a tiro no sábado à noite, naquilo que o Governo afirma ter sido uma tentativa de golpe de Estado em que morreram outras quatro altas figuras político-militares. Na primeira fila, marcava presença o primeiro-ministro, Abiy Ahmed, que ao fim de 15 meses de grandes reformas granjeou inúmeros inimigos e escapou ele próprio a um atentado, quando uma granada explodiu num comício o ano passado.

A cerimónia fúnebre foi rodeada de grandes medidas de segurança e as ruas à volta do local foram bloqueadas pela polícia. Bloqueada também continua a Internet, pelo terceiro dia consecutivo.

A morte do general Seare Mekonnen, assassinado em sua casa por um guarda-costas, que matou ainda outro oficial, o general na reforma Gezai Abera; a que se juntaram as mortes do presidente do governo do estado de Amhara, Amabachew Mekonnen, do seu assessor Azeze Wasse e do procurador-geral na região, Migbaru Kebede, são a ponta de um icebergue de um país mergulhado numa crise violenta que o desenvolvimento económico tem disfarçado.

Para William Davidson, não sendo um Estado falhado como referem alguns analistas, dentro e fora do país, a Etiópia “enfrenta uma grave crise política e de segurança, como ficou demonstrado por este nível elevado de violência política e pelos milhões de pessoas deslocadas internamente por causa do conflito” (actualmente é o país do mundo com mais deslocados internos: 2,9 milhões). E a não ser que esses “problemas sejam reconhecidos e enfrentados, há o perigo de que o conflito se aprofunde”, acrescenta o analista sénior do International Crisis Group, especialista em assuntos etíopes.

Que se aprofunde e acabe por desestabilizar a região do Corno de África. “Se a Etiópia cair numa guerra civil terá um enorme impacto regional, porque, por exemplo, é a principal economia e um importante garantidor da paz regional e destino de refugiados”, adiantou o especialista.

Para Abiy Ahmed, o primeiro chefe de Governo etíope da tribo omoro, a maior de um país com 80 tribos diferentes, um dos seus grandes problemas é o dos conflitos interétnicos, sobretudo por questões de terras, que se agudizaram nos últimos anos, quando o desenvolvimento económico acelerado deixou de conseguir disfarçar a questão.

“Um dos grandes perigos é o fracasso em abordar uma das principais causas da crise política, que são as fracturas entre os partidos regionais que compõem a coligação no poder”, explica Davidson.

Abiy chegou à liderança da Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope, o movimento guerrilheiro que alcançou o poder depois de uma guerra civil de 30 anos e domina o país desde 1991. É composta por quatro partidos regionais, a Organização Democrática dos Povos Omoro, o Movimento Nacional Democrático Amhara, o Movimento Democrático dos Povos do Sul da Etiópia, e a Frente de Libertação do Povo Tigré, que representam também as tribos mais influentes.

Além de introduzir reformas com vista a abrir o regime autocrático, a melhorar o funcionamento da democracia e a dar maior liberdade à imprensa, Abiy, antigo oficial dos serviços de inteligência, procedeu também a mudanças nas estruturas militares e de segurança, aliviando o peso excessivo dos tigrés, que apesar de corresponderem a apenas 6% da população dominam o aparelho do Estado há quase três décadas.

Só resolvendo essa questão se podem “criar as condições de segurança para realizar eleições competitivas”, explica Davidson. Caso contrário, a insegurança continuará, levando a um atraso no processo eleitoral, aprofundando a crise política.

Como explica ao Financial Times Clionadh Raleigh, especialista em Etiópia da Universidade de Sussex, Abiy está “a tentar progredir de uma autocracia funcional para uma autocracia concorrencial” e isso, no país mais velho de África, feito de uma complexa interligação étnica, não é tarefa fácil.

No entanto, “a maioria dos passos em direcção à liberalização política eram necessários”, explica Davidson, porque “a Etiópia enfrentava uma grande agitação social que ameaçava deteriorar-se e agudizar os conflitos”. Foi aliás, por isso, que, depois de três anos de protestos e instabilidade, Hailemariam Desalegn anunciou a sua demissão de primeiro-ministro em 2018.

A questão está agora em saber se os acontecimentos de sábado à noite ampliarão as diferenças entre os quatro partidos da coligação no poder. Como escreve o International Crisis Group em comunicado, as mortes de 22 de Junho “podem desatar intensas lutas pelo poder e reacções violentas em zonas politicamente sensíveis do país”.

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