Um adeus a’O Corvo

O Corvo conseguiu uma inigualável abrangência de temas e uma preponderância pouco comum num órgão de comunicação social movido por tão escassos recursos.

O New York Times lançou na semana passada uma campanha chamada “The truth is local”, que poderíamos traduzir livremente para “a verdade é local”, e que é uma forma pomposa de dizer que as coisas que se passam no bairro, na freguesia e na cidade têm muita relevância jornalística porque são, muitas vezes, os acontecimentos que mais impactam na vida das pessoas.

A campanha tem duas vertentes. No site do jornal estão histórias e reportagens seleccionadas de cada um dos cinco boroughs de Nova Iorque (muito mal comparado, são como as nossas freguesias), mais um separador só dedicado ao metro. Além de ser possível ler os trabalhos, alguns já com vários anos, ainda se pode ouvir os jornalistas da casa a explicar o processo que levou à publicação.

A outra vertente é a instalação de fotografias em montras dos cinco boroughs, com referência às histórias que se passaram ali mesmo, para chamar a atenção de quem passa na rua. “Fazer reportagem de qualidade na região de Nova Iorque é central na missão do Times, especialmente num momento em que o jornalismo local está em risco por todo o país”, escreveu Clifford Levy, editor da secção Nova Iorque, na newsletter diária só dedicada à cidade.

A campanha tem um óbvio pendor publicitário (o jornal quer captar assinantes), mas isso não lhe retira o mérito de trazer para a primeira linha do debate público o estado do jornalismo local. Se as coisas vão mal nos Estados Unidos, o que dizer de Portugal? O que dizer de Lisboa, que há poucas semanas perdeu um dos seus principais jornais locais — O Corvo?

O Corvo nasceu em Março de 2013 e uns meses depois recebeu-me. Tive por lá uma passagem não muito longa mas intensa, marcada pelo entusiasmo de saber que estávamos a escrever sobre uma Lisboa prestes a ter um abanão. O novo Plano Director Municipal estava a entrar em vigor, o turismo não tinha tido ainda o seu boom, o activismo pela cidade fazia-se em blogues, a habitação e os transportes estavam muito longe de ter o peso mediático que hoje têm. O Corvo nasceu no momento certo.

Olhar para os textos que então escrevíamos mostra bem como a cidade mudou em seis anos. Debatia-se, por exemplo, se fazia sentido substituir a calçada portuguesa por outro tipo de piso, como tinha sido anunciado por António Costa que iria acontecer. Falava-se de como a cidadania estava, aos poucos, a entrar no espaço das redes sociais.

Lisboa mudou muitíssimo entre 2013 e 2019, data em que O Corvo nos deixou. Mudou tanto que hoje até se vulgarizou uma misteriosa expressão, “nova Lisboa”, como se uma cidade milenar tivesse sido inteiramente refundada em meia dúzia de anos que hão-de ser um asterisco nas páginas da História.

Se há hoje essa tal “nova Lisboa”, com tudo de bom e mau que isso trouxe, isso deve-se a muita gente — incluindo o pequeno contingente de jornalistas d’O Corvo, que foram relatando diariamente as pequenas e as grandes histórias de uma urbe efervescente. O Corvo conseguiu uma inigualável abrangência de temas e uma preponderância pouco comum num órgão de comunicação social movido por tão escassos recursos.

O jornalismo não pode ser só grandes histórias, grandes notícias. Faz-se também dos buracos da rua que a câmara não tapa, da árvore que a junta abate sem explicar porquê, dos bairros que não vêm para a rua gritar, das pessoas que têm vontade de contribuir para uma cidade melhor. É por isso que o jornalismo local é tão fascinante, o que não lhe tem valido de muito nos grandes jornais, onde cada vez menos é aposta.

Se é certo que, em Lisboa, continuamos a ter alguns jornais locais — Expresso do Oriente, Olhares de Lisboa, O Freguês, Jornal de Lisboa são alguns (outros haverá que não conheço ou de que não me lembro) — com o adeus d’O Corvo ficamos todos mais pobres.

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