Nem só de votos se faz uma democracia

Parece-me indiscutível que a falta da adesão às urnas não é culpa de uns ou de outros, mas do hábito que alguns partidos incutem nas suas máquinas de só trabalharem nos meses de campanha e pré-campanha, estando-se bem a borrifar para a vida do povo nos restantes dias.

Foto
Nuno Ferreira Santos

Não pretendo com este texto escamotear o facto de que as abstenções nestas eleições europeias constituem um grave sintoma da doença de que a nossa democracia padece. Antes pelo contrário.

A abstenção de perto de 70% nestas eleições leva-nos a uma necessária reflexão sobre o que pretendemos alcançar com o sistema democrático. São muitos os que apelam a esta reflexão, mas o apontar caminho torna-se mais difícil.

Não é de agora nem de há dez anos que a abstenção se tornou a vencedora de praticamente todas as eleições, é uma doença crónica que não pode encontrar desculpas nas patologias dos agentes políticos porque, em boa verdade, políticos somos todos nós, particularmente quando tomamos a decisão de ir ou não votar.

A democracia não se esgota nos actos eleitorais, pelo menos a democracia que Abril pretende construir. Todos os dias somos chamados à construção do sistema democrático, não se trata de uma frase vazia de significado, mas um pressuposto inquestionável de uma sociedade pluralista. Todos os dias, nas fábricas, nos serviços, nas escolas e universidades somos interpelados a tomar decisões desde as mais pequenas às maiores. Cada vez que reivindicamos a subida de um salário, a redução da jornada de trabalho ou o fim das propinas estamos a dar um contributo significativo para a construção de uma sociedade progressista e avançada e que, inevitavelmente vai levar e culminar no voto. O voto é uma realização colectiva construída todos os dias pelas mãos de quem não desaparece das ruas em tempos de não-sufrágio e se bate pelo melhoramento da vida do povo e do país.

A abstenção pode ser combatida todos os dias e não apenas nos meses que antecedem as eleições, através de um maior envolvimento de todos na vida política nacional. Somos levados a crer, muitas vezes, que a nossa política é o trabalho e nele devemos esgotar todas as forças. Se assim fosse, não teríamos tempo nem disponibilidade para a construção da sociedade a que temos direito. Mas também temos direito a fazer ouvir as nossas vozes e ecoá-las ao longo de toda a vida para que esta não permaneça hirta na mesma forma em que nos a apresentam.

Parece-me indiscutível que a falta da adesão às urnas não é culpa de uns ou de outros, mas do hábito que alguns partidos incutem nas suas máquinas de só trabalharem nos meses de campanha e pré-campanha, estando-se bem a borrifar para a vida do povo nos restantes dias desta vida. Não são todos assim e cabe-nos tomar decisões para que o paradigma mude radicalmente, percebendo quem é que está todos os dias à porta das suas fábricas da sua escola do seu emprego. Perceber quem é que realmente quer fazer a diferença e construir uma democracia avançada que não se esgote em actos eleitorais, mas que seja construída e projectada todos os dias pelas mãos de quem segura o estandarte da luta por um país mais justo.

Não podemos, portanto, dramatizar a falta de adesão às urnas porque o importante é voltar às ruas para fazer política, aquela política mais verdadeira e descomprometida, aquela cujo único compromisso é com o povo e o país e não com as empresas do grande capital. Desenganemo-nos se não acharmos que a promiscuidade entre a política e os grandes grupos económicos não contribui para o desinteresse em relação aos assuntos que a todos dizem respeito.

Não é, portanto, hora de lamentar resultados e afluências, mas de arregaçar as mangas e prosseguir com a luta que nos fez chegar até aqui. Não dêmos a juventude e a sociedade como perdidas porque são cada vez mais os que percebem que a vida não tem de ser assim. Pode não ter sido desta que decidiram tomar posição, mas não tardará.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários