Dia de eleições

Podia ter-lhe falado do perigo do avanço dos populismos e dos extremismos, e de como tudo se torna mais perigoso quando quem os combate — e sim, também através do voto —, desiste de lutar.

— Eu não vou votar, votar para quê?

— Para depois não se queixar.

O táxi tinha arrancado há pouco tempo e eu já tinha explicado ao condutor que ia à Câmara do Porto ver como estava a correr a votação antecipada para as eleições europeias. Foi no domingo passado e o vento frio não ajudava muito à boa disposição. Percebi pela conversa que o senhor não estava a perceber muito bem do que é que eu estava a falar (pessoas a votar uma semana antes do dia 26, o que era isso?), mas como o tema incluía eleições, achou por bem dar o seu contributo, com o muito habitual “Eu não vou votar, votar para quê?”.

Eu podia ter sido mais simpática na resposta. Podia ter-lhe dito que o voto foi algo que nos custou muito a conquistar e que devemos honrar esse direito. E que, além disso, se não contribuirmos de alguma forma, não podemos depois queixar-nos por as forças políticas com que mais nos identificamos não estarem representadas como gostaríamos. Podia ter-lhe falado do perigo do avanço dos populismos e dos extremismos, e de como tudo se torna mais perigoso quando quem os combate — e sim, também através do voto — desiste de lutar. Mas, terá sido culpa do vento frio, sentada no banco de trás (muitas vezes sento-me à frente, mas desta vez, ia atrás), continuei a olhar pela janela, enquanto me ficava por aquela resposta apressada. Ele não deixou grande espaço ao silêncio e continuou logo a seguir.

- O 25 de Abril a mim não me trouxe vantagem nenhuma.

Ah! Era tudo o que eu precisava de ouvir para ficar mais animada. Uma das inúmeras versões do “antes é que era bom”. Podia ter-me exaltado. Podia ter-lhe dito que aqueles cabelos brancos me mostravam que ele tinha idade suficiente para ter experimentado o que era viver em ditadura e que não percebia como era capaz de dizer aquilo. Podia pedir-lhe que me explicasse, então, as vantagens que existiam quando o país não vivia em democracia, quando havia censura, tortura, prisões políticas e guerra colonial. Mas fiquei-me por um irónico:

- Pode ser que um dia destes o senhor tenha uma ditadura de volta para se animar.

Só para ver se ele percebia. Só para ver se a coisa ficava por ali. Porque era domingo à tarde e eu estava a trabalhar, porque estava vento frio, porque não me apetecia argumentar, com a certeza que não havia sequer tempo suficiente para que a conversa chegasse a algum lado. Porque eu às vezes sou muito antipática, embora não muitas vezes. O silêncio, desta vez, prolongou-se por mais alguns segundos. Poucos. E o taxista tentou de novo:

- Ainda ontem levei um funcionário do supermercado que ganhava 650 euros.

Nós aqui podíamos ter ficado amigos. Eu poderia ter concordado com ele sobre as misérias que se ganham neste país, com tudo o que falta fazer, com as condições que não temos e já devíamos ter, com o insulto das reformas miseráveis que marcam o fim de uma carreira de décadas de trabalho. Eu podia, se a constatação do senhor não fosse uma tentativa da parte dele para justificar o que dissera antes. Assim, limitei-me a um:

- Sim, porque antigamente os salários eram muito bons.

Nada construtivo, eu sei. Acho que já referi que às vezes consigo ser bastante antipática. Mas para que não fiquem a pensar o pior, deixem-me dizer-vos que o senhor deve ter percebido que não ia conseguir qualquer apoio da minha parte e não voltou ao assunto. Quando falou de novo foi para perguntar onde é que eu queria ficar exactamente e eu respondi-lhe com simpatia. Despedimo-nos com cortesia e votos mútuos de bom trabalho.

Pouco depois estava a conversar com um rapaz de 18 anos que estava a votar pela primeira vez. Percebi pelo que me disse que este fim-de-semana ia ter uma festa de arromba e que não queria estar preocupado em acordar a horas e com a mente suficientemente clara para ir votar. Mas não quis deixar de o fazer e por isso votou com uma semana de antecedência, aguardando pacientemente na fila.

Não me lembrava para que eleição tinha ido votar pela primeira vez. Mas foi só verificar a data em que fiz 18 anos para perceber que tinha havido autárquicas nessa altura. Fui votar, claro. Ligeiramente nervosa, ainda a observar como tudo se processava, mas sem deixar de o fazer. Vejo pelos resultados desse ano que não ganhou o partido que escolhi. Não faz mal. Continuo a votar e nunca votei em branco. Não vivi antes do 25 de Abril de 1974, mas não tenho qualquer dúvida que ele me trouxe inúmeras vantagens. E não abdico de contribuir. Como acordo cedo, é bem provável que a esta hora já tenha ido votar. E ainda sobra muito tempo para fazer tudo o resto que apetece num domingo em que não se está a trabalhar.

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