De Bruxelas até Moçambique: Susana não desiste de fazer das crianças “cidadãos activos”

Fundada em 2005 por uma professora portuguesa, a AIDGLOBAL actua na área da educação e promove iniciativas em Moçambique e Portugal. A obtenção de fundos europeus “está cada vez mais difícil”, admite Susana Damasceno.

Foto
Rui Gaudêncio

Como se promove a educação e um melhoramento dos níveis de literacia em territórios em que parece faltar tudo? A pergunta surge de forma natural e nunca deixa de ser pertinente. Susana Damasceno tenta dar-lhe resposta todos os dias desde 2005, ano em que fundou a AIDGLOBAL, uma organização não-governamental para o desenvolvimento (ONGD). Há 14 anos, a antiga professora do ensino básico decidiu integrar um grupo de cinco voluntários e partir rumo à província de Gaza, em Moçambique, para trabalhar num orfanato com cerca de 50 crianças.

Embora inquietante, a estadia de 22 dias em Moçambique não foi o primeiro contacto de Susana Damasceno com realidades díspares da sua. Afinal, quando era mais nova bastava-lhe sair de casa e rumar à escola, onde partilhava a sala de aula com crianças com poucos recursos, para se dar conta destas diferenças. Os colegas pertenciam a famílias “provenientes das antigas colónias”, nomeadamente Moçambique, habitavam “no bairro da Portela, com os esgotos a céu aberto”, e “ocupavam a Quinta do Mocho, que na altura “eram prédios sem janelas e portas”.

Foi, no entanto, a experiência como voluntária que a fez despertar para as “desigualdades profundas que nos separam logo à nascença”. Esta percepção, materializada na pergunta “O que é que eu vou fazer com a experiência que aqui tive?”, deu origem a uma cadeia de acção: constatação, inquietação, resposta. Nasceu, assim, a AIDGLOBAL, a 4 de Novembro de 2005.

Foto
Susana Damasceno em Moçambique.

Muito antes de ter conseguido o estatuto de ONGD, concedido pelo Governo português pela mão do Ministério dos Negócios Estrangeiros em 2006, a fundação já tinha o âmbito de actividade bem definido: a educação, através da promoção da mesma. É que Susana “sempre quis ser professora”. “E nada mais do que isso.” Na visão da própria, esta é a única via para que “todas as pessoas, mesmo as mais desprovidas de oportunidades, possam evoluir enquanto profissionais, seres humanos e cidadãos”.

No terreno, o sonho de Susana passa da teoria à prática através de programas de capacitação de professores, criação de bibliotecas — móveis, as bibliotchovas (uma junção de “biblioteca” com carrinhos de mão, ou tchovas) e fixas —, actividades de animação da leitura e promoção do uso do livro nas salas de aula. Mesmo quando estas são a sombra de um cajueiro.

Os “constrangimentos financeiros” e as complicações em criar “metodologias participativas para que os alunos possam, de facto, expressar ideias e distinguir-se” surgem de toda a parte e podem começar logo aquando da edificação de escolas. É igualmente difícil “garantir a permanência e a assiduidade das crianças” nas escolas, já que um número considerável tem que caminhar largos quilómetros para lá chegar. “Perdem-se ou acabam por desistir pelo caminho porque não têm força para chegar. Não lhes foi dado um pequeno-almoço que lhes permita ter energia suficiente para fazer uma caminhada longa e depois ainda estarem uma manhã a ouvir um professor debitar matéria”, recorda. “Todo o sistema de ensino, em termos metodológicos, assenta na base da repetição. E isto numa sala com mais 50 ou 60 crianças.”

A professora reconhece, ainda assim, que há, por parte das autoridades moçambicanas, uma “consciência da importância, urgência e necessidade de investir na alfabetização e educação”. O exemplo do percurso traçado pelos países europeus, que no passado se encontravam num igual estado de desenvolvimento, é demasiado gritante para os governos destes territórios não assumirem uma postura de aprendizagem. “Há toda uma estrutura que tem que ser repensada, mas nós [portugueses] também já passamos por isso — somos muito jovens — e foi preciso ajudarem-nos”.

Os dez anos de experiência de Susana no ensino, actividade que abandonou para se dedicar inteiramente à gestão da AIDGLOBAL, permitiu-lhe acompanhar algumas das mudanças que aconteceram na escola portuguesa durante este período de tempo, e que deveriam obedecer a um princípio-chave: “despertar consciências e mostrar o mundo aos alunos, de forma a torná-los cidadãos activos, participativos e reactivos”.

Fotogaleria

E isto só possível graças “àquilo que a Europa tem de melhor": “a possibilidade de intercomunicação, de mobilidade, de nos encontramos além-fronteiras, de conhecermos novas culturas, de criação de uma entidade comum, de nos compreendermos, de nos enriquecermos”. O uso deste espaço comum tem sido aproveitado pelos próprios professores — os que ainda resistem — para evoluírem em termos metodológicos, aprendendo com os seus pares europeus.

Obter financiamento europeu é “cada vez mais difícil”

Os projectos de intercâmbio, como o Erasmus, são imprescindíveis no que toca a promover uma cidadania europeia, mas também global — um dos principais lemas da ONGD que Susana dirige. “O que teria sido de nós, enquanto instituição, se não tivéssemos conseguido aceder aos fundos europeus e consequentemente a colegas com os quais temos aprendido imenso e feito trabalhos extraordinários…?”

Alguns dos trabalhos a que Susana se refere são os projectos Gvets e Urbagri4Women, ambos executados com financiamento europeu. O primeiro, que beneficiou de apoios do programa Erasmus+ (com um orçamento anual superior a 15 mil milhões de euros), pretende desenvolver uma formação interdisciplinar para técnicos que trabalhem diariamente com crianças migrantes. Através da gamificação — uma ferramenta pedagógica que utiliza técnicas de jogos —, procuram melhorar as competências destes profissionais para um melhor acolhimento de crianças migrantes e refugiadas. O segundo, financiado pelo Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração (com um orçamento global superior a três mil milhões de euros), visa fomentar a integração de mulheres migrantes nas sociedades de acolhimento, munindo-as de capacidades para o desenvolvimento de projectos pioneiros na área da agricultura.

Os dados presentes no Quadro da União Europeia para a Cooperação Internacional e o Desenvolvimento, relativos aos projectos e programas financiados realizados entre 2016 e 2017, dizem que mais de 16 milhões de crianças beneficiaram das ajudas europeias para a frequência de instituições de ensino. E 166 mil pessoas usufruíram de programas de ensino, formação profissional ou de desenvolvimento de competências, com vista ao melhoramento da sua empregabilidade.

Apesar do sucesso destes projectos, Susana admite que a obtenção de fundos por parte de organizações com a dimensão da AIDGLOBAL “está cada vez mais difícil”. Isto deve-se a uma “maior exigência que se reflecte nos grandes envelopes das linhas de financiamento”. É o caso da linha DEAR (Development Education and Awareness Raising), uma das mais usadas pela AIDGLOBAL, que só aceita candidaturas de projectos cujo financiamento mínimo seja de um milhão de euros. À partida, esta poderia ser uma notícia positiva. No entanto, há um revés da moeda: as instituições europeias apenas financiam, regra geral, 90% do custo total do projecto, com as ONG a terem que avançar com o restante valor. Para responder a esta exigência, as associações têm que formar consórcios internacionais cada vez maiores.

Como os Objectivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) estão longe de serem cumpridos, a AIDGLOBAL está a promover uma marcha em Vila Franca de Xira. A Walk the (Global) Walk, agendada para 15 de Maio e com ponto de encontro marcado para o Jardim Municipal Constantino Silva, vai contar com a participação de quase mil alunos dos agrupamentos das escolas daquele município. Estes jovens participaram em programas de cidadania activa —​ desenvolvidos em simultâneo com outros 11 países —, que questionaram os próprios estudantes sobre os ODS e promoveram uma reflexão sobre o mundo em que coabitam e no qual terão que tomar as próprias decisões. Agir é a palavra de ordem.

Sugerir correcção
Comentar