Fronteira, qual fronteira? Damian acorda em Espanha e trabalha em Portugal

A linha que divide os territórios de Portugal e Espanha é a fronteira mais antiga da Europa, mas nunca como hoje ela foi transformada numa linha imaginária para as populações transfronteiriças.

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“Os portugueses dão-me muito trabalho”, diz, a sorrir, Damian Gonzalez. É trabalho no bom sentido. Gonzalez, espanhol, de 54 anos, continua a viver na sua terra, Rosal de la Frontera, a cerca de cinco quilómetros de Vila Verde de Ficalho, mas foi um dos primeiros empresários do país vizinho a procurar, em 1996, trabalho em Vila Nova de S. Bento, quando a abertura da fronteira já se tornara uma realidade. Para ele, não era uma terra estranha. Aprendera a conhecê-la contrabandeando toucinho de Espanha para Portugal que o consumia em grandes quantidades. Na volta, levava para o seu país café. Foi desta forma “sempre com o coração aos saltos” que encontrou razões para gostar dos portugueses.

Em 1995, o acordo de Schengen entra em vigor em sete países: Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Luxemburgo, Países Baixos e Portugal. A partir daquele ano, os viajantes de todas as nacionalidades passaram a poder deslocar-se entre todos estes países sem controlo de passaportes nas fronteiras. O que começou por ser estranho, sobretudo para as populações da raia alentejana que aprenderam a cruzá-la durante séculos com o contrabando às costas ou dissimulado. Hoje está profundamente entranhado o hábito de circular sem barreiras ou constrangimentos. Como se não houvesse países.

Damian Gonzalez dedicou-se à transformação de carne de porco alentejano (presuntos, paletas, paios, paiolas, chouriças). Em 2006, ergueu de raiz a sua própria fábrica em Vila Nova de S. Bento. O negócio cresce “devagarinho” mas de forma segura. Começou com 21 pessoas. Agora já dá trabalho a 70, 50 portugueses e 20 espanhóis e cerca de 90% são mulheres.

“Vim para Portugal porque, em primeiro lugar, gostava de Portugal e aqui encontrei uma região muito boa para criar porco alentejano. E gostei tanto das pessoas que já estou aqui há 23 anos”, explica ao PÚBLICO, enquanto mostra o espaço onde cria em simultâneo 1500 porcos de raça alentejana na “finca (herdade)” coberta de azinheiras saudáveis, onde se produz a bolota que torna a carne deste tipo de suínos aconselhada por nutricionistas pelo seu baixo teor de gorduras polinsaturadas.

Diz que não lhe foi difícil instalar o negócio em Portugal. “Quando cheguei, a Câmara de Serpa deu-me muitas facilidades para abrir a minha empresa em Vila Nova de S. Bento”, freguesia que fica a apenas 15 quilómetros de Rosal de la Frontera. “Disponibilizou-me terreno por um valor muito baixo com a condição de criar postos de trabalho para naturais da terra”. 

No princípio, sentiu alguns problemas de adaptação dos trabalhadores portugueses ao método de trabalho que procurou aplicar. Em Portugal, o salário da mão-de-obra era muito baixo, tal como o ritmo de trabalho. “Se quiserem ganhar mais têm de produzir como em Espanha, dizia-lhes. Hoje aqui trabalha-se a um ritmo muito bom. Hoje há um equilíbrio maior que não tem nada a ver com o que passava há 20 anos”, acentua. 

Sai de casa todas as manhãs às 5h30/6h00 e ruma a Portugal. “Se fechassem a fronteira a minha vida seria bastante mais complicada”, observa Damian Gonzalez. “Só o facto de podermos passar ao longo das 24 horas de cada dia, de um lado para o outro, sem restrições e sem controlo burocrático, é uma enorme vantagem. De outra forma ficávamos retidos na nossa terra”, acrescenta. 

O contrabando voltava a ser a enxada de trabalho, das populações da raia. As regiões transfronteiriças são, com algumas excepções, espaços rurais e agrícolas marginais, onde aconteceram raras mudanças estruturais e produtivas e insuficiente diversificação de actividades e fontes de rendimento.

A livre circulação de fronteiras a que se seguiu a construção da barragem do Alqueva abriu as portas ao investimento espanhol. Damian Gonzalez refere que “muitos vieram para o Alentejo, por ter melhores condições de negócio que não tinham em Espanha” pesem embora as queixas sobre a complexidade burocrática que atrasa a materialização de projectos. Seja como for, o Anuário Agrícola de Alqueva, relativo a 2018, revela o peso do investimento espanhol que é de 7% no milho, na produção frutícola já chega aos 21%, enquanto o olival tem vindo a registar uma quebra acentuada para se situar nos 35% da área plantada, e no amendoal cobre 69% da área coberta por esta cultura que está em crescimento acelerado.

“Em Espanha sinto-me em Portugal”

Damian Gonzalez ​é um dos muitos trabalhadores que todos os dias atravessam a fronteira para exercer a sua actividade. Trabalha noutro país sem ser propriamente um deslocado uma vez que a distância é curta, o que lhe permite manter residência em Espanha.

Em toda a Europa, os trabalhadores deslocados são cerca de 1,8 milhões de pessoas. Em 2017 foram de Portugal para Espanha 9.038 trabalhadores, o 5º país na preferência dos portugueses que continua a ser liderado pela Inglaterra com 22.622 portugueses. Em sentido inverso o nosso país acolheu 84 mil trabalhadores residentes estrangeiros em 2017.

Mas há portugueses que atravessam a fronteira todos os dias. E, perante esta realidade, imaginar o regresso de uma fronteira física que impusesse a obrigatoriedade de apresentar passaporte, parar para que os carros fossem revistados como antigamente, antes de Portugal entrar na União Europeia, causaria muitos constrangimentos.

O que é leva um jovem de 37 anos “bom rapaz, nascido e criado em Vila Verde de Ficalho” a optar por trabalhar no Rosal de la Frontera? “Gosto muito de Espanha, onde estou como em minha casa”, justifica Carlos Alberto Veredas que desenvolve a sua actividade profissional na comercialização de carnes na região de Andaluzia, sobretudo em Huelva, Sevilha e também em parte do Algarve. Sai de casa todos os dias cerca das 7h00 e regressa por vezes às 22h00.

“Somos um povo fronteiriço e, logo em criança, aprendi a língua espanhola que hoje falo muito bem”, sublinha Carlos Veredas. Apesar dos seus 37 anos, ainda se recorda das fronteiras (portuguesa e espanhola) que obrigavam as pessoas a longas horas de espera, quando o seu propósito era apenas comprar alimentos no Rosal, ou frequentar uma festa ou uma romaria na povoação espanhola. “E tínhamos medo do que comprávamos”, frisa o jovem. Nunca sabiam se o que levavam era passível de “apreensão, multa ou até prisão, para além do dinheiro que se gastava nas compras”, recorda.

Comparativamente, os anos de convívio diário com o povo do Rosal onde trabalha “é o mesmo que viver em Portugal”. A realidade vivida diz-lhe que “são pessoas espectaculares. Estou como se estivesse em casa”. É um sentimento comum a todos os povos que são vizinhos na fronteira, que perceberam as vantagens que a livre circulação trouxe para as suas vidas. Damian pode investir em Portugal e Carlos pode trabalhar em Espanha.

Também há desvantagens e o jovem de Ficalho não as escamoteia. “Temos o tráfico de droga e de pessoas que está muito facilitado porque ninguém controla”, critica, comparando a realidade das últimas duas décadas com a que vivia quando as fronteiras eram controladas. Havia um horário de passagem que no verão era das 8h00 às 24h e no inverno até às 22h00. Após o encerramento, já não se podia passar.

O Relatório da Emigração de 2017, elaborado pelo Observatório da Emigração, regista uma continuada tendência na entrada de portugueses em Espanha que está a crescer sustentadamente desde 2014. Em 2017, chegaram mais cerca de nove mil portugueses, que faz do país vizinho o quinto que mais merece a preferência dos portugueses. No total, há quase 100 mil portugueses a viver em Espanha onde se encontram 1,4 milhões de trabalhadores estrangeiros. Na Alemanha residem 3,4 milhões de emigrantes e no Reino Unido 2,6 milhões.

A circulação de pessoas na União Europeia está a enfrentar um período conturbado, sendo cada vez mais frequentes os apelos ao fecho de fronteiras. Carlos Veredas estranharia que a voltassem a fechar. “Habituamo-nos de tal maneira a tê-la aberta que já faz parte do nosso modo de estar”, observa. “Já imaginou a imposição de um horário para abertura e fecho da fronteira, quando, no meu caso, por vezes, saio para o Rosal às 5h00? Não o poderia fazer”.

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