O ADN recolhido na investigação criminal também se partilha

Investigadora da Universidade do Minho coordena projecto para compreender como funciona a partilha de informação genética entre os países da UE no âmbito da investigação criminal.

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Helena Machado Inês Fernandes
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Investigadora da Universidade do Minho Inês Fernandes

Helena Machado, investigadora da Universidade do Minho (UMinho), reuniu uma equipa de nove investigadoras das áreas da sociologia, do direito e da criminologia para estudar o modo como os ainda 28 estados-membros da União Europeia (UE) utilizam as bases de dados ADN para investigação criminal, regulam esse uso através dos sistemas de justiça nacionais e como partilham essa informação no âmbito da Convenção de Prüm, assinada em 2005 para combater o terrorismo e a criminalidade transfronteiriça. 

Uma das conclusões do projecto Exchange, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação, com 1,8 milhões de euros, é a de que a partilha transfronteiriça de informação genética para investigação criminal é um “retrato da fragmentação e da heterogeneidade que existe na UE”. “Há uma clivagem muito vincada entre o que se designa Europa de Leste e o resto da Europa, na forma como se encara a partilha das bases de dados de ADN”, realçou a socióloga, também presidente do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da universidade minhota – tomou posse na passada sexta-feira.

Para levar avante o projecto que arrancou em Outubro de 2015 e tem conclusão prevista para 30 de Setembro de 2020, o grupo coordenado por Helena Machado entrevistou todos os responsáveis pelos sistemas da Convenção de Prüm em cada país, com excepção da Grécia e da Itália, que ainda não têm bases de dados de ADN instituídas, e da Dinamarca, que não se mostrou, até agora, disponível para participar. Além disso, a equipa que conduziu o projecto na Universidade de Coimbra, entre 2015 e 2017, e está agora vinculada à UMinho, avançou com um estudo comparativo dos casos de Portugal, da Polónia, da Alemanha, dos Países Baixos e do Reino Unido.

A equipa de investigação descobriu que, no Leste da Europa, “há muita vontade e receptividade em aderir ao sistema de Prüm”, apesar das “dificuldades financeiras e de recursos humanos” para se garantir a entrada de mais perfis de ADN nas bases de dados e a sua manutenção. “Esses países crêem que, se forem europeus, conseguirão um dia ser menos pobres”, explicou Helena Machado. No caso concreto da Polónia, a investigadora realçou que a base de dados, apesar de relativamente pequena, é muito utilizada para a identificação civil de pessoas desaparecidas durante a II Guerra Mundial.

Já o caso do Reino Unido, o país com a maior e mais antiga base de perfis de ADN – entrou em vigor em 1995 e alberga os dados de nove a dez milhões de pessoas -, persiste a hesitação em aderir ao sistema de Prüm, algo que se deve concretizar ainda neste ano, apesar do Brexit, afirmou a coordenadora do projecto. “O país vai aderir, mais foi um processo de avanços e recuos, o que diz muito da história e do posicionamento do país em relação à UE”, descreveu.

Uma das justificações para a cautela britânica é o receio de toda a informação da base de dados poder circular por todos os Estados-membros. O país é, por isso, contra um sistema de Prüm “completamente automatizado”, ideia com a qual Helena Machado concorda. “Se houvesse nove milhões de perfis a circular, iam acontecer imensas correspondências positivas de ADN falsas”, explicou.

Crime e categorias sociais

O sistema baseado na convenção de Prüm sustenta a investigação criminal transfronteiriça a partir do momento em que se encontra uma correspondência entre um perfil de ADN e os vestígios biológicos encontrados numa cena de crime, disse a socióloga. As trocas de informação são, no entanto, limitadas pelas leis de cada país.

Apesar dos Países Baixos terem ligações informáticas a todos os outros países da UE, a maioria dos Estados-membros só pode partilhar as suas bases de dados com seis ou sete países – é o caso de Portugal. Apesar de haver ligações entre países pela proximidade geográfica, tal como acontece entre Portugal e Espanha, os países várias vezes querem ligar-se com países associados a um estereótipo de emigração e de criminalidade, nomeadamente a Roménia e a Polónia. Essa ideia, explicou Helena Machado, está presente nos muitos perfis da Europa de Leste nas bases de dados da França, a Alemanha e os Países Baixos, segundo os testemunhos dos responsáveis desses países. “As bases de dados têm categorias sociais mais vulneráveis à criminalização, como o estrangeiro. Não qualquer estrangeiro, mas o estrangeiro de determinadas nacionalidades”, descreveu.

A influência das categorias sociais na forma como se olha para o crime não é uma novidade na carreira de Helena Machado, que desenvolve investigação na sociologia do crime e da justiça desde 2000. Um dos seus estudos, publicado em 2012, dá conta das perspectivas de vários reclusos nas cadeias portuguesas sobre o papel do ADN na investigação criminal. A base de dados portuguesa, disse, tem cerca de 8.000 perfis, que, segundo os dados das populações prisionais, correspondem, na maioria, a cidadãos oriundos de cabo-verde ou de etnia cigana.

Divergência entre polícia e justiça

Mas as diferenças de perspectiva quanto ao uso dos perfis de ADN nas bases de dados nacionais não se resumem a países. Aplica-se também a classes profissionais, nomeadamente o sistema policial e o sistema judiciário. Os magistrados do sistema de justiça, disse Helena Machado, tendem a ser “mais cautelosos e zelosos quanto à protecção de dados” e não disponibilizam informação de qualquer forma. Os agentes policiais, por seu turno, querem “trocar a informação o mais rapidamente possível”, alegando, normalmente, que as primeiras 48 horas são de ouro” numa investigação. Queixam-se também que os magistrados, além de “lentos a facultar informação”, não têm cultura de cooperação internacional. A socióloga afirmou que, entre a polícia, prevalece “uma cultura da eficiência e da rapidez na obtenção da informação”, que por vezes pode ser invasiva da privacidade das pessoas.

A investigadora reconheceu ainda que a realização de um estudo de nível europeu só foi possível graças ao financiamento do Conselho Europeu de Investigação, já que a maior verba que alguma vez recebeu da Fundação para a Ciência e Tecnologia para um estudo foi de 200 mil euros. Para Helena Machado, o programa Horizonte, responsável pelo financiamento da investigação na UE, é essencial para impedir que a produção de ciência na Europa se atrase ainda mais face à China, aos Estados Unidos e à Índia – no ciclo de 2015 a 2020 foram atribuídos, até agora, 678 milhões de euros a Portugal para 1.551 projectos, e, para o próximo ciclo, há a possibilidade do orçamento para a UE chegar aos 100 mil milhões de euros.

O financiamento atribuído ao país entre 2015 e 2020 ultrapassou ainda as verbas atribuídas nos ciclos que se estenderam de 2003 até 2006 (172 milhões de euros) e de 2007 até 2013 (565 milhões). Além disso, Portugal conseguiu, pela primeira vez, receber mais do Horizonte (1,58% do orçamento total) do que contribuir (1,23%).

Mais de 100 milhões de euros do programa da UE para a investigação foram atribuídos no âmbito do Conselho Europeu de Investigação. Já a investigação sobre o cancro, financiada pelo Instituto Marie Curie, recebeu mais de 60 milhões de euros, tal como a investigação nas áreas da energia e das tecnologias da informação e comunicação.

Em termos regionais, 51% do financiamento (346 milhões de euros) foi atribuído à Área Metropolitana de Lisboa, seguindo-se o Norte, com 27%, e o Centro, com 16%. O Alentejo e o Algarve receberam, cada um, 2% da verba, enquanto os Açores e a Madeira conseguiram 1%, cada.

Retratos virtuais e dados de empresas privadas são preocupações éticas

A partilha transfronteiriça de informações das bases de dados de ADN não é o único tópico relativo à investigação criminal cujas implicações éticas são, neste momento, discutidas por cientistas e juristas. Um dos fenómenos que mais preocupa Helena Machado é a utilização de um perfil de ADN para se criar um retrato virtual de um eventual suspeito na investigação de um crime.

O processo, designado de inferência fenotípica, já tem sido levado a cabo nos Estados Unidos desde 2015, graças à cooperação entre a empresa Parabon NanoLabs, autora dos retratos, e as forças policiais. Já os cientistas forenses na Europa, disse a socióloga, elaboram normalmente um relatório a dar conta das probabilidades do suspeito ter determinadas características físicas – olhos castanhos, por exemplo – a partir de ADN encontrado no local do crime, uma pista que, por si só, “não identifica automaticamente o culpado”.

Os especialistas europeus, acrescentou, consideram que a técnica não está “suficientemente desenvolvida para fazer um retrato com as certezas necessárias”, pelo que só admitem a sua utilização quando todas as “outras possibilidades de investigação estiverem esgotadas”. Outra das controvérsias associadas à inferência fenotípica é o potencial discriminatório associado a certas características físicas, como a cor de pele, disse ainda Helena Machado.

A forma como empresas privadas usam perfis de ADN é outra das preocupações da socióloga. A empresa norte-americana Family Tree DNA, responsável pela produção de testes genéticos supostamente com fins recreativos – dá informação genealógica aos seus clientes -, admitiu, em Janeiro último, ceder informação genética ao FBI para investigação criminal. Essa partilha conduziu, por exemplo, à detenção, em Abril de 2018, de Joseph James DeAngelo, suspeito de 12 homicídios e da violação de 51 pessoas na Califórnia, entre 1974 e 1986. A chave foi a correspondência entre o seu ADN e o de um familiar que estava na base de dados da empresa. “Ao facultar esses dados, a empresa colocou os clientes como potenciais suspeitos em termos genéticos”, disse.

Helena Machado acredita que as empresas norte-americanas de testes genéticos, que hoje já operam no Reino Unido, podem expandir-se em breve para outros “países grandes da Europa, com mercado apetecível”, como a Alemanha. Perante esse cenário, a investigadora considera “imprescindível” que os vários países da UE instituam legalmente “auditorias éticas” a essas mesmas empresas.

Europa está no bom caminho

A Europa, no entanto, está a dar os passos certos para garantir o equilíbrio entre a segurança da sociedade e os direitos individuais, como a privacidade e a presunção de inocência. A socióloga enalteceu o debate sobre a utilização dos perfis de ADN dos cidadãos europeus, mas há ainda medidas a tomar para melhorar o acordo de Prüm: é preciso um “método sistematizado e uniforme de recolha de dados”, para melhorar a transparência do sistema e dar ao público o “acesso a bons números”, mas também salvaguardar os direitos das pessoas a saberem se o seu perfil de ADN está inserido nas bases de dados e em que casos o podem apagar. Helena Machado considera ainda que uma entidade transnacional para fiscalizar a ética dos procedimentos de cada estado-membro pode também ser útil, já que, por ora, vários países têm a sua comissão de ética, mas, na maioria dos casos, não especializada.

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