Notre-Dame e a horizontalização do mundo

As tendências em curso no mundo do trabalho não mudarão de rumo se as relações de poder no seio das empresas não forem profundamente modificadas. Serão os Estados Unidos a mostrar-nos a via da democratização das empresas? Precisamos de repor a flecha de Notre-Dame.

Além da emoção, entrevi no incêndio da Cathédrale Notre-Dame um símbolo das dinâmicas de fundo que estão a marcar as nossas sociedades. Entendo por horizontalização do mundo o esboroamento de tudo o que fica acima dos interesses individuais: os valores, o bem comum e os interesses coletivos; ou seja, os aspetos que conferem aos seres humanos e às sociedades a sua verticalidade, a sua elevação face a motivações mesquinhas e a sua dedicação a valores superiores. A queda da flecha de Notre-Dame pode ser interpretada como sendo a queda dessa verticalidade, deixando os indivíduos ao lado uns dos outros sem nada que os una, nem valores, nem projetos ou ideais comuns que se sobreponham à soma das suas vontades.

A horizontalização do direito

Os valores unem os seres humanos e obrigam-nos uns em relação aos outros; o reconhecimento de um bem comum também. O direito tem precisamente por finalidade zelar pelo bem comum. O direito estabelece regras que, justamente, nos obrigam a todos. Ora, o jurista Alain Supiot mostrou, nas suas aulas no Collège de France, que o direito está a ser posto ao serviço dos interesses individuais, está a tornar-se um instrumento do “Mercado Total”. Os países competem entre si através de leis fiscais, leis do trabalho e de (des)regulações várias para atrair investimento, instituindo um mercado mundial de normas em que  as leis competem entre si, em vez de estarem acima dos interesses individuais.

Em 2010, Richard Posner, um economista jurista da Escola de Chicago, lançou a teoria do efficient breach of contract, segundo a qual um contratante pode não cumprir os termos do contrato, portanto, a sua palavra, se achar mais vantajoso não respeitar o contrato e pagar à outra parte o que esta pretender. O interesse individual substitui-se à lei como referência normativa. É isto a horizontalização do mundo: a palavra dada já não vincula, já não significa obrigação nenhuma, está ao mesmo nível que os valores pecuniários. Os valores têm um preço em vez de se situarem acima dos preços.

Horizontalização do mundo e teoria económica

A teoria económica dominante sempre foi avessa aos valores e ao bem comum, porque considera qualquer obrigação como sendo uma restrição à liberdade individual. Comportar-se de modo a maximizar os seus interesses individuais é a forma como ela descreve os comportamentos humanos e como ela acha que os humanos se devem comportar. A prossecução dos interesses próprios e a deslegitimação de qualquer verticalidade foram notoriamente promovidas por Milton Friedman, um pilar da Escola de Chicago, num artigo do New York Times de 1970, onde afirma que a única responsabilidade das empresas é fazer tanto dinheiro quanto possível. Escreve ainda: “...dizer que a empresa deve propiciar emprego, eliminar a discriminação e evitar a poluição é pregar socialismo puro.”

Friedman lançou assim as bases do que veio a ser a teoria económica dominante da empresa, a teoria da agência, que nega que haja algum bem comum numa empresa e vê a empresa como uma rede de contratos estabelecidos livremente entre as partes. As empresas são supostas ser povoadas, tal como os mercados, por indivíduos que procuram maximizar o seu interesse e cultivam entre si relações fundadas no cálculo do interesse próprio. Se maximizar o lucro é o único objetivo legítimo das empresas, porque seriam os trabalhadores animados por outros valores? Desenvolveram-se então práticas de gestão coerentes com esta visão das pessoas e da economia: práticas baseadas em incentivos monetários e em metas quantificadas.

Tal como acontece no domínio do direito, as teorias económicas provenientes da Escola de Chicago estão a contribuir para “horizontalizar” o mundo do trabalho. Esta horizontalização vai ao ponto de negar que exista autoridade ou subordinação no seio da empresa. A relação de trabalho é uma relação contratual como qualquer outra, em que trabalhadores e empresas entram livremente; a haver obediência, esta é paga pela empresa e é vendida pelo trabalhador. As noções de autoridade e de obediência, reconhecidas desde os Gregos como estando na base da ordem social, porque significam aceitar a existência de um bem comum superior a cada indivíduo em particular, são pura e simplesmente negadas. Ora, como pode uma sociedade, ou uma empresa, funcionar sem autoridade? Deve aqui ser notado que não é só a teoria económica dominante que tem problemas com as noções de autoridade e subordinação; as teorias económicas que veem na autoridade só coerção e exploração também estão a passar ao lado da “verticalidade” como entendida aqui.

As teorias da Escola de Chicago estão a promover a horizontalização do mundo do trabalho ao estimular o desmoronamento do carácter coletivo do trabalho e a sua individualização, temas que já abordei nestas páginas. Os trabalhadores estão hoje cada vez mais concentrados na sua “produtividade” individual e nas metas quantificadas que devem atingir, o que instala uma competição perversa que propaga a suspeição entre trabalhadores em detrimento da confiança. Promove-se assim uma “psicopatia cultural” em que comportar-se sem empatia e sem valores é considerado normal em vez de anómalo.

Verticalidade, mas com democracia

O problema não está na organização hierárquica das empresas; o problema está na não-participação dos trabalhadores nas decisões das empresas. As tendências em curso no mundo do trabalho não mudarão de rumo se as relações de poder no seio das empresas não forem profundamente modificadas. Por isso, já aqui defendi a difusão alargada de modos de governo das empresas semelhantes aos que existem na Alemanha e nos países escandinavos, em que os trabalhadores são representados nos conselhos de administração e participam em conselhos de empresa eficientes. A candidata democrata às eleições presidenciais nos Estados Unidos, Elizabeth Warren, propôs um projeto de lei nesse sentido. Serão os Estados Unidos a mostrar-nos a via da democratização das empresas? Precisamos de repor a flecha de Notre-Dame.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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