Regresso à escola, 40 anos depois

Estes miúdos, com 13 ou 14 anos de idade, amanhã poderão dizer que já foram a um tribunal e falaram com juízes e que não veio daí nenhum mal ao mundo.

A recordação mais viva que tenho da passagem pelo Liceu do Pragal (Escola Fernão Mendes Pinto, em Almada) é do dia 5 de Dezembro de 1980, na manhã dramática a seguir à morte de Sá Carneiro, quando um colega do 11.º ano murmurava, com lágrimas nos olhos: – o que vai ser de Portugal? Mal podia sonhar que, passados quase 40 anos, regressaria àquela escola para falar a 100 alunos do 8.º e 9.º ano sobre Justiça, Direito e Cidadania, num Portugal que ainda cá está e há-de continuar.

A visita inseriu-se numa iniciativa começada pela associação dos juízes portugueses em 10 de Dezembro de 2010, agora com âmbito nacional e com a designação de “Tribunal Aberto – Formar para a Cidadania”, que tem levado os juízes às escolas e as escolas aos tribunais e que contou este ano com mais de 200 escolas inscritas, envolvendo cerca de 6000 alunos do ensino básico e secundário (o vídeo de apresentação pode ser visto no canal “Justamente – Falar de Justiça”, no YouTube e Facebook). A ideia não tem nada de extraordinário. Os juízes têm o dever social de contribuir para formar cidadãos activos, responsáveis, autónomos, com pensamento crítico, solidários, conhecedores dos valores essenciais da vida em comunidade e do papel crucial dos tribunais no asseguramento do Direito e da Justiça. É preciso, também, através da proximidade e confiança, desmistificar a ideia do tribunal como entidade abstracta e inacessível e do juiz como alguém substancialmente diferente do comum cidadão. Como disse aos alunos, o juiz é uma pessoa vulgar; a única característica que verdadeiramente o distingue das outras pessoas é a invulgaridade da função que exerce.

Foi uma experiência inesquecível. Falou-se do que é o direito e as regras sociais, o que são os tribunais, quem lá trabalha e o que faz, o que é um julgamento e como se processa, quais são os nossos direitos e deveres principais. Falou-se de violência física, psicológica, sexual, social e verbal no namoro, nas estatísticas terríveis, que nos dizem que 68,5% dos jovens consideram os comportamentos violentos normais e que 56% já sofreram algum tipo de violência nas relações afectivas (UMAR, 2018). Falou-se de privacidade e redes sociais, de publicações com incitamentos ao suicídio ou violência, de stalking e bullying, de comportamentos violadores de direitos, como partilhar “nudes” da namorada ou sonegar passwords e entrar em contas que não nos pertencem. Falou-se de drogas, daquele pequeno passo que pode separar o prazer das drogas leves e a tragédia da adição às drogas duras, das diferenças entre consumir e traficar – ficaram espantados quanto perceberam que, para a lei, partilhar uma “ganza” com um amigo é crime de tráfico.

Fui bombardeado com dezenas de perguntas. Os miúdos, ao contrário do que às vezes nos parece, estão informados, são perspicazes e capazes de elaborar reflexões profundas e têm grande interesse nas temáticas que se cruzam na sua vivência diária. Se os professores não tivessem posto fim à sessão, provavelmente ainda lá estava a responder.

No dia seguinte os alunos foram ao tribunal assistir um julgamento de um homem acusado por crimes de violência doméstica e violação de proibições. Assimilaram tudo com aquela avidez e curiosidade de quem vive uma experiência pela primeira vez. Não puderam assistir à leitura da sentença, mas ficam a saber por aqui que o arguido foi condenado na pena de 2 anos e 8 meses de prisão efectiva (ainda em recurso).

Pessoas com 50, 60 ou 70 anos dizem muitas vezes: – nunca entrei num tribunal. Fazem-no com um misto de orgulho e receio. Orgulho porque associam a presença no tribunal a um acontecimento negativo e receio porque vêem o tribunal como uma entidade punitiva. É claro que não é assim porque nos tribunais também se assegura o reconhecimento e efectividade dos direitos. Estes miúdos, com 13 ou 14 anos de idade, amanhã poderão dizer que já foram a um tribunal e falaram com juízes e que não veio daí nenhum mal ao mundo.

Permitam-me os leitores uma nota final de agradecimento à direcção do Liceu do Pragal (é assim que carinhosamente o continuo a recordar) e muito em especial à professora de físico-química Cristina Azevedo, na pessoa de quem presto uma homenagem muito sincera a todos os professores, que ajudam a formar, instruir e educar os nossos filhos e a quem quase sempre nos esquecemos de dar o devido reconhecimento.

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