Uma questão de apelido

Ainda acredito que há coisas em que não é preciso a justiça interferir. Basta bom-senso.

Tenho um apelido que se estranha, por ser invulgar. Não é como Oliveira ou Costa, com significado próprio. São três sílabas que, juntas, não querem dizer nada nem apelam a nenhuma memória histórica ao contrário do que acontece com Henriques ou Bourbon. 

Nem sequer conheço bem a história deste lado da minha família — e tenho pena por isso. As origens são a zona raiana do nordeste do país e essa é uma das razões pelas quais sempre me disseram que teria sido algum soldado da altura das invasões francesas a deixar por ali raízes. Outra razão para essa conclusão tem a ver com a sonoridade do nome. Há pelo menos um soldado Sapage que ficou para a história contada nas paredes do Castelo de Bragança — Manuel Sapage. Quanto orgulho senti nesse desconhecido, quando, em criança, descobri o seu nome, que é também o meu, durante uma visita de estudo da escola primária a essa capital de distrito. 

A família não é muito grande e nunca esteve nas altas esferas do Estado. Nenhum ministro, nenhum secretário de Estado, nada. Também não conheço outro Sapage no jornalismo. Há poucos nos partidos e, quando há, nem sequer é sempre no mesmo.
Apesar disso, não é invulgar receber uma carta de um leitor a contar-me uma história antiga de um Sapage que conheceu e a perguntar-me se eu não terei ligação a esse familiar. Gosto disso. Por vezes há também um político ou outro, normalmente do Norte, que tem ou teve um Sapage como referência. Já me aconteceu, até, pensarem durante muito tempo que sou filha de quem não sou, tratarem-me com simpatia extra, e o equívoco permanecer até ao dia em que disseram: “Mande cumprimentos meus ao seu pai, o António”. Só que o meu pai chama-se Fernando.

O nome de família persegue-nos mais do que, às vezes, a própria família. Não quero com nada disto dizer que não há familiares a mais nos gabinetes deste Governo. Não vejo vantagens nisso para a democracia e acho que devia haver menos. São cargos de confiança, sem dúvida, mas quando só confiamos em membros da família da nossa família política, algo está errado. Nas formas de recrutamento, mas também na maneira como as elites de protegem e promovem umas às outras, numa espécie de organização social a fazer lembrar os tempos da monarquia. E isto acontece na política, como na banca.

A este propósito lembrei-me de um livro de Fernando Rosas, Francisco Louçã, Luís Fazenda, Jorge Costa e Cecília Honório, lançado em em 2010. Em Os Donos de Portugal — Cem anos de poder económico (1910-2010), os autores descrevem uma burguesia que “é uma teia de relações próximas: os Champalimaud, Mello, Ulrich, entre outros, unem-se numa mesma família. Os principais interesses económicos conjugam-se na finança.”

O polémico livro conta ainda como esta “oligarquia”, ameaçada pelo 25 de Abril, se restabeleceu “através de um gigantesco processo de concentração de capital organizado pelas privatizações”. A conclusão dos autores é que os ricos e poderosos de ontem são, afinal, os de hoje. Nada mudou.

Mas se nada mudou, por que razão nos indignamos mais? 

Posso responder por mim. Eu acreditei que, se o sistema de justiça põe um elemento da toda-poderosa família Espírito Santo sob investigação, se esse mesmo sistema instaura um inquérito a um antigo primeiro-ministro e investiga as relações próximas entre a política e os negócios, então, já nunca voltaremos a permitir que certos erros se repitam. Espero ter razão, porque ainda acredito que há coisas em que não é preciso a justiça interferir. Basta bom-senso.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários