Anthony Bourdain, a última temporada de um homem a olhar o mundo

Morreu durante as filmagens da 12º temporada de Parts Unknown, que chega agora a Portugal no 24 Kitchen. Para a despedida, leva-nos ao Quénia, a Espanha, à Indonésia e aos EUA. E, pela última vez, deixa-nos, como ele estava, deslumbrados, vulneráveis e sem certezas perante o mundo.

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É difícil ver a última temporada de Parts Unknown, o programa de Anthony Bourdain na CNN — que em Portugal será transmitido a partir de dia 1 de Abril no 24 Kitchen (de 2ª a 6ª às 23h20), com o título Anthony Bourdain: Viagem ao Desconhecido — e não procurar em cada imagem uma resposta: porque é que um homem, ex-chef transformado em viajante e apresentador de televisão, e que tinha, na aparência, uma vida que todos invejavam, se suicidou, no dia 8 de Junho de 2018, aos 61 anos? O que é que ele viu no mundo pelo qual viajava que o fez deixar de querer viver nele?

É, evidentemente, um exercício inútil. Há, como sempre houve, uma espécie de tristeza no olhar, e até no sorriso, dele, mas não há nenhuma resposta — nem teria que haver. O que há é, logo no primeiro episódio (são sete, percorrendo ainda Espanha, Indonésia e, nos EUA, Nova Iorque (o Lower East Side) e o Texas, e dois de tributo), uma viagem ao Quénia que é tudo aquilo que nos habituámos a ver nos melhores momentos de Parts Unkonwn.

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Anthony Bourdain com W. Kamau Bell, no episódio passado no Quénia dr

Bourdain viaja acompanhado pelo humorista W. Kamau Bell, apresentador de uma outra série da CNN, United Shades of America. Kamau, que tem origens quenianas e nunca tinha estado no Quénia, confessa ter imaginado muitas vezes a cena em que ele e Bourdain estão sentados numa tasca local a conversar — e ela lá está. Passamos pelos mercados de roupa em segunda mão enviada como donativos pelo Ocidente, que é um sucesso no Quénia ao mesmo tempo que destrói a indústria têxtil do país; ouvimos histórias da luta da comunidade gay queniana; viajamos num alucinante autocarro matatu que é uma autêntica discoteca (e tudo o mais que se possa imaginar) sobre rodas; entramos num safari para ver os animais em risco de extinção e assistimos, divertidos, ao total desconforto de Kamau quando, numa aldeia Masai, tem que beber sangue retirado directamente da jugular de uma vaca.

O que o episódio nos permite é confirmar que Bourdain continuava em grande forma, a procurar as histórias que ninguém mais contava, a fazer as perguntas certas para nos ajudar a perceber a realidade (e, o que é mais importante, sem nunca ser maniqueísta) e a beber sangue de vaca numa aldeia Masai com o estilo inabalável de quem o faz todos os dias ao pequeno-almoço — a mesma coolness com que comia nos melhores restaurantes do mundo ou bebia uma cerveja com o antigo Presidente americano Barack Obama, à mesa de um bar em Hanói.

A temporada inclui dois episódios especiais de homenagem, um dos quais, O Impacto de Bourdain, procura precisamente perceber o que fazia do antigo cozinheiro, e autor de vários livros, um fenómeno de popularidade na televisão e uma personagem capaz de criar empatia com todos — e eram muitos e muito variados — com quem se cruzava nas suas viagens, primeiro para o programa No Reservations, para o Travel Channel, e nos últimos anos para a CNN.

O próprio Bourdain interrogava-se sobre o seu papel. “Eu descrever-me-ia como um cozinheiro com sorte, que pode contar histórias”, diz, a certa altura. “Não sou certamente um jornalista, e já não sou um chef. Gosto de me gabar dizendo que sou escritor. Mas sou um contador de histórias. Vejo coisas e falo sobre isso, e sobre como isso me fez sentir naquele momento. Se o puder fazer honestamente, é o melhor que posso esperar.”

O que é especialmente interessante — e nós pudemos assistir a isso — é a forma como Bourdain evoluiu ao longo da sua vida televisiva. Um dos entrevistados no episódio de homenagem, o autor e apresentador de podcasts Andy Greenwald, explica que “cada vez mais o programa tornou-se sobre o mundo que o rodeava” e Bourdain percebeu que o seu poder estava em pôr à frente da câmara pessoas que, de outra forma, não teriam essa oportunidade. “Quis mostrar-nos alguma coisa e não mostrar-nos apenas ele a ver alguma coisa”.

Apesar de viajar a maior parte do ano e de conhecer já grande parte do mundo, Bourdain conseguia continuar a encontrar coisas que o interessavam, o surpreendiam e o tiravam da sua zona de conforto. E partilhava essas emoções com honestidade. Ele próprio diz que “há sítios que nos arrancam da nossa forma confortável de olhar o mundo, das nossas convicções e preconceitos e os voltam ao contrário”. Andy Greenwald vê nele a coragem de “fazer perguntas desconfortáveis e de se colocar em situações desconfortáveis” e admira o facto de alguém que tinha conquistado um estatuto que lhe permitiria ir pelo caminho mais fácil, “nunca o fazer”.

Tudo começou com a comida — houve, segundo o próprio, refeições boas, más, “algumas memoráveis, por boas e más razões” e “poucas verdadeiramente épicas”. Revemo-lo, por exemplo, a comer um pedaço de porco cheio de gordura e gelatina e a constatar que “Deus esconde-se algures aqui”. Ouvimo-lo a confessar que se alguém não se interessa por comida, “a conversa está mais ou menos acabada”. E a confidenciar a importância de ter uma casa-de-banho que funcione quando se viaja pelo mundo. Mas assistimos também a momentos deliciosos da amizade e cumplicidade com o chef Eric Ripert, que foi precisamente quem o encontrou morto durante as filmagens desta temporada, em França. “Ainda bem que ele tem sentido de humor, porque quem faz televisão comigo vai precisar”, disse um dia Bourdain sobre o amigo.

Mas o mais comovente é ver o homem que tinha tatuado no braço a frase “I’m certain of nothing” explicar que é isso que “faz a viagem ser o que é: uma interminável curva de aprendizagem”, e partilhar “a alegria de estar enganado, de estar confuso”. No fundo, não é preciso muito mais do que alguma humildade, alguma generosidade. Por todo o lado no mundo, só temos que “olhar um pouco mais de tempo e um pouco mais profundamente” para ver que as coisas não são assim tão diferentes onde quer que nos encontremos. 

O que Anthony Bourdain nos deixou com os seus programas de televisão é apenas isso, um homem a olhar o mundo — um homem que, como diz um dos seus amigos, “tinha o coração no sítio certo”. Na conclusão do episódio do Quénia, ele interroga-se uma última vez sobre qual é realmente o seu papel: “Faço o meu melhor. Olho, ouço, mas no final sei que esta é a minha história, não é a de Kamau, não é a do Quénia, não é a dos quenianos. Essas são histórias que ainda estão por ouvir”. Há um ano, Bourdain deixou de ser aquele que contava as histórias.

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