Paz à alma grande de Anthony Bourdain

Devemos respeitar a morte de Anthony Bourdain: é o mínimo que podemos fazer por ele. Ele nunca se armou em herói ou estrela do rock n'roll. Ou só se armou um bocadinho que até tem graça. Foi uma pessoa honesta que disse a verdade e que soube partilhar o que descobriu.

"Tinha os olhos tristes", dizia alguém. Mas toda a gente que se suicida fica com os olhos tristes. "Estava doente, se calhar" diz outra pessoa.

A primeira coisa a fazer é respeitar o suicídio de Anthony Bourdain. Ele era uma pessoa honesta. Podíamos confiar nele. O suicídio é um acto de honestidade. Diz-nos que ele preferiu morrer a continuar vivo.

O suicídio também é uma acção egoísta e violenta, muitas vezes zangada. Não é uma acção passiva. Devemos a Anthony Bourdain esta clareza. Ele já nos mostrou como se sente. Sentiu-se com vontade de morrer. E matou-se.

Ficámos surpreendidíssimos – e é essa surpresa que nos choca e entristece. Mas não podemos confundir esse choque com luto. Luto é o sofrimento causado às pessoas que o conheciam e amavam. Bourdain escolheu deixá-las. A decisão foi dele. Aquilo que o levou a tomar essa decisão não nos é devido.

Embora seja humano especular, diminui a decisão do suicídio. Se estava muito doente, pensamos, então está tudo explicado, está tudo bem, o mundo continua a girar sobre o eixo, passemos à tragédia seguinte.

Nós não temos direito a essa explicação, a essa reposição da tranquilidade. Suponhamos que a decisão do suicídio tenha sido tomada quando ele estava bêbado. Vem dar ao mesmo: é uma das muitas más decisões que tomou quando estava bêbado. Bourdain não se arrependia. Não pedia desculpa. Não prometia transformar-se nem redimir-se. Ele era assim. E era assim que nós gostávamos dele.

Anthony Bourdain foi um inovador. No livro Kitchen Confidential deu com a língua nos dentes. Disse a verdade. Mostrou como se fazia teatro na restauração falando dos actores e da vida dos actores. Não foi só uma questão de revelar os podres da profissão: também devolveu a humanidade à profissão.

Na obra televisiva que prolongou a atitude do livro ousou falar ao público como se falasse a um bom amigo. Não cultivou ambiguidades nem compadrios: a falta de pretensões tem uma longa história culinária. A honestidade não.

Anthony Bourdain foi um inovador. A inovação dele foi a honestidade e a independência. Foi pena haver tão poucas pessoas que seguiram o exemplo dele. O mundo da comida, da cozinha e da restauração está cada vez mais aldrabão, mais promíscuo e mais hipócrita.

É por isso que Bourdain vai fazer falta. Porque ainda há pouca gente como ele, em que se possa confiar que não está a mentir e que não está a dizer uma coisa porque está a fazer um favor ou recebeu dinheiro para dizê-la.

Bourdain tinha um espírito genuinamente aberto, disposto a aprender mas também disposto a não aprender, a ficar confuso, a ficar na dúvida, a ficar na mesma. As viagens dele são notáveis porque nunca sabemos como ele vai reagir. Às vezes corriam mal – e ele mostrava-nos como e quanto.

A tragédia dessa espantosa honestidade foi não ter feito escola. As pessoas que se encontravam com Bourdain tentavam influenciá-lo mas ele nunca se deixava enganar. Foi obstinadamente fiel à verdade dele, à inteligência dele e ao gosto ecléctico que explorava tão bem.

Com essa honestidade toda poderia ter sido um observador sisudo e frio. Mas ele conseguia à mesma entusiasmar-se – e até render-se, ficando calado diante do poder bruto de uma maravilha nunca dantes provada.

É por isso que devemos respeitar a morte de Anthony Bourdain: é o mínimo que podemos fazer por ele. Ele nunca se armou em herói ou estrela do rock n'roll. Ou só se armou um bocadinho que até tem graça. Foi uma pessoa honesta que disse a verdade e que soube partilhar o que descobriu.

Não é pouco. É muito. A única coisa que temos a dizer é: paz à alma grande de Anthony Bourdain.

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