Galegos dizem que oferta para médicos portugueses é “enganosa”

Associações de médicos galegos avisam que contratos de trabalho de 61.500 euros anuais implicam fazer muitas substituições e ter horários alargados. Junta da Galiza nao comenta.

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Rui Gaudencio

Se há duas décadas foram os médicos espanhóis que vieram trabalhar para Portugal em número significativo, agora abriram-se as portas para que médicos de família e pediatras portugueses emigrem para a Galiza. A recente oferta de trabalho para profissionais destas duas especialidades com a promessa de um salário anual de 61.500 euros brutos, no mínimo, como anunciado há dias pelo Servizo Galego de Saúde (Sergas) na imprensa nacional, fez soar as campainhas de alarme em Portugal, que continua a debater-se com a escassez de médicos de família.

Mas da Galiza chegam, entretanto, avisos de que esta oferta pode revelar-se menos atractiva do que parece à partida. Maria José Fernandez Dominguez, médica galega que trabalhou durante cinco anos em Portugal e que integra o conselho regional da associação galega de medicina de família e comunidade, explica que o que é oferecido aos portugueses é um novo contrato de trabalho delineado pelo “Serviço Galego de Saúde da Junta da Galiza” que foi “rejeitado pelas principais sociedades científicas de medicina geral e familiar” espanholas e pela ordem dos médicos local.

Este novo modelo de contrato surgiu para “dar resposta às reivindicações” das estruturas representativas dos médicos galegos que reclamam estabilidade para os profissionais precários que têm assegurado substituições de “dias ou de semanas” nos centros de saúde galegos, relata. Um problema que, em Dezembro, levou à demissão em bloco de “quase todos os directores dos centros de saúde de Vigo”, num contexto em que os médicos se queixam da “sobrecarga de utentes (40-50 ao dia)” e do “desrespeito progressivo” pelo seu trabalho, sintetiza.

Depois de o anúncio ter sido publicado, um grupo de clínicos “em situação de precariedade” que se designa “Precárias pola Aténcion Primária” alertou num comunicado que o prometido salário de 61.500 euros anuais se ficará por “40 a 45 mil euros” com as retenções fiscais e que os contratos não visam a cobertura de uma vaga num centro de saúde nem a substituição de um profissional em concreto. O objectivo é assegurar “substituições em vários centros de saúde de um distrito para possibilitar a cobertura imediata das necessidades”, sendo na prática “um acumular de substituições de curta duração”.

“Pedimos aos nossos colegas portugueses que não se deixem seduzir pelos cantos de sereia da Junta da Galiza”, apela o grupo, convidando os médicos do outro lado da fronteira a pôr-se em contacto com eles para “receber mais informação”.

Afirmam que a jornada laboral será de “48 horas semanais [no máximo], num cômputo semestral”, na prática “190 horas mensais, um total semestral de 1140 horas”. Isto pode implicar “meses de 200 ou 250 horas”, sustentam.

"Trabalho escravo”

Mais: os médicos terão de estar pelo menos duas vezes por mês de plantão (de 24 ou 17 horas), sem garantia do direito à folga a seguir, acrescenta Maria José Dominguez. As jornadas podem, assim, “estender-se até às 31 horas seguidas”. “Este contrato é um embuste, é trabalho escravo”, remata a médica que diz que, com 21 anos de trabalho, ganha cerca de 2700 euros líquidos por mês, podendo auferir “mais mil euros mensais se fizer dois plantões por mês ou se substituir colegas”.

A Asociación de Médicos Interinos de Galicia anunciou, entretanto, que pediu à embaixada de Portugal em Espanha que “reaja”, classificando a oferta do Sergas como “enganosa” e “no limite do dumping” (prática de venda abaixo do valor de custo, que não é permitida).

O PÚBLICO pediu esclarecimentos à Conselleria de Sanidad da Xunta da Galicia, que não respondeu, apesar das várias tentativas efectuadas nesse sentido.

“Se esta oferta for verdadeira, há-de haver alguns médicos a ir para a Galiza”, reage Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, que teme que este anúncio possa funcionar como “uma arma de arremesso”, à semelhança do que aconteceu há alguns anos, com a vinda de “médicos cubanos e colombianos para Portugal”.

Para evitar que alguns médicos portugueses passem a fronteira, aliciados por “mais mil ou dois mil euros por mês”, Rui Nogueira defende que o Ministério da Saúde deve “clarificar” como vão ser os concursos para a contratação dos recém-especialistas e que condições lhes serão oferecidas. Estes são médicos “treinados com um grau de exigência elevadíssimo, pelo que é preciso arranjar condições e unidades de saúde devidamente dimensionadas e equipadas para os receber” em Portugal, recomenda.

A confirmar-se o interesse dos portugueses, será um movimento em sentido inverso. Há duas décadas foram os médicos espanhóis que vieram para Portugal em grande número. A vinda de médicos espanhóis intensificou-se a partir de 1998, atingiu um pico entre 2003 e 2004 (perto de dois mil), mas depois foi diminuindo. Muitos destes médicos vieram fazer uma especialidade e mais tarde acabaram por regressar a Espanha.

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